Por Flavio Mateos
Os Estados Unidos são um
país contraditório desde sua natureza. Nasceu revolucionário, seus Pais
Fundadores foram homens de bom sentido e virtudes naturais, mas de maus
princípios. Protestantes puritanos e maçons que queriam construir um país com
base na heresia, o qual é ir contra tudo o que é estável, e de per si contraditório. O mesmo
Washington era um gentleman e
revolucionário; tinha propriedades e escravos, e realizou uma revolução. Por um
lado a honestidade e pelo outros a rebeldia, criando juntas uma tensão que
sempre persistiria no país. Se trata da liberdade colocada antes da verdade.
Estados Unidos é um país onde o Presidente norte-americano deveria ser chamado
Rei, segundo Chesterton, pois a República norte-americana era a última monarquia
medieval. E sem dúvida, este “Rei” obedecia a poderes ocultos que o
transformavam em um lacaio daqueles que tomavam verdadeiramente as decisões.
Estados Unidos é o país onde o homem do Sul, Lincoln, comenda o país do Norte
durante a guerra civil. Foi neste país, onde o liberalismo estava comodamente
aposentado, ocultando aparentemente essas contradições, de onde a nova vinda de
imigrantes europeus fez pé. A idéia suprema da liberdade, a confiança no
sistema democrático, a certeza de ser a “terra das oportunidades”, a pujança
econômica e o naturalismo se faziam firmes no ideário do norte-americano médio.
O poder econômico nas mãos dos banqueiros internacionais estava a ponto de
acrescentar-se ao extremo de dominar por completo a União (isto ia dar-se em
1913 com a criação – fraudulenta – da Federal
Reserve). A maçonaria e o poder judeu, os protestantes em inumeráveis
seitas e os católicos se repartiam em diferentes proporções a seu grau de
influência em uma sociedade dinâmica e em crescimento, em especial logo após a
Primeira Guerra. Mas o problema é que o catolicismo norte-americano se
comprometeu com o mundo naquilo que hoje se conhece como “americanismo”,
traduzindo “sem mais tramite à vida
diária dos católicos o “espírito americano” secular, que por sua vez deriva
diretamente do puritanismo e do iluminismo inglês.” Era o modernismo
religioso funcionando com todos seus
direitos e prerrogativas em uma sociedade “tolerante”. Os judeus, por sua
parte, já incertos desde sua primeira vinda imigratória, se adaptaram como
quase em nenhum outro lugar (melhor incluso que na Argentina), talvez porque,
em opinião de Israel Shamir, encontraram no liberalismo imperante uma espécie
de judaísmo secularizado.
Assim as coisas, se com o
cinema surgiria a possibilidade de uma última linguagem contraditória dos
postulados e formas de um mundo dessacralizado e anti-tradicional que se estendia com a crescente influência dos meios de comunicação, o domínio
financeiro e, logo após, com as guerras, finalmente nessa luta se comprovou que
essa mesma linguagem nova podia ser refinada mas à sua vez falsificada para
muito sutilmente continuar e servir de base à guerra por outros meios.
Colocando no terreno cultural, a supremacia mundial seria muito menos
dificultosa. As contradições que forjaram a sociedade norte-americana se faziam
presentes dentro de Hollywood.
Façamos uma parênteses antes
de seguir. Há algo que disse Chesterton e que, como sempre, mais ainda mais que
em referência a nosso tema, é matéria de reflexão: “É habitual condenar o estadounidense como um materialista por causa do
culto ao êxito. Mas efetivamente este mesmo culto, como qualquer culto, ainda o
culto do diabo, prova que, mais que um materialista, é um místico”. Isto
nos leva a entender como e porque o cinema é algo que só pode surgir nos
Estados Unidos e não na Europa. Nos referimos, neste caso, à herança que
assumiu Griffith e os autores que a continuaram, antes que aos industriais que
possibilitaram e explodiam suas conquistas. Nos referimos a esse sentido de
culto cerimonioso e simbólico na forma de vincular-se à realidade (que Griffith
como bom sulista possuía), um tipo de misticismo que, fora da necessária guia
mestra da Igreja Católica, se terminou desviando não até o materialismo se não
até um neo-paganismo que logo sim, em nossos tempos, abraçaria o aberrante e o
incomunicável, previa degradação do sentido simbólico-ritual da vida. Enquanto
a Europa se havia estancado em uma imobilidade própria de quem se submete à
máquina, nos Estados Unidos a máquina foi submetida pelo homem que a tomou como
objeto sobre o qual elevou seu dinâmico misticismo. O europeu se prostrou
diante da máquina porque já não se prostrava diante de Deus. O americano não se
prostrava diante da máquina porque seu misticismo culto do êxito lhe exigia
movimentar-se. Mas também é certo que uma reverência residual do puritanismo e
do catolicismo liberal tomou para si essa re-utilização da máquina para olhar o
mundo como se este fosse jovem. Por tudo isto o cinema norte-americano pode
re-introduzir a figura do herói e a épica, sem as quais o cinema não haveria
sido o que foi. Pois agora, quê classe de herói ou arquétipo moldou Hollywood,
isso é tema de outro capítulo de nosso livro.
O certo é que o materialista
europeu esgotava sua visão no retângulo da tela fixa de Lumière e Mélies. O
místico americano, ao contrario, não podia fixar-se quieto sem expandir sua
visão mais além até o vasto horizonte. O êxito lhes pertencia. Desde logo, nem
todo misticismo é bom. O culto do comércio espreitando à poesia criaria uma
contradição que muitas vezes derivaria na insatisfação de ver estropiadas
nobres qualidades adaptadas a um fórceps de felicidade final para assegurar o
êxito. Essa dupla vertente do misticismo vinculava de uma forma com a vida
através da fantasia, e de outra através da realidade. Isto é: a chamada
“fabrica de sonhos” produzia filmes e obtinha dinheiro. Havia filmes que podiam
chegar a vincular – com sua linguagem tributaria da tradição simbólica
ocidental – com a realidade, e falamos da realidade metafísica; enquanto que o
culto do puro êxito levava a evadir da realidade a quem desde os grandes
estúdios corriam atrás do êxito e poder, mensurável em números de bilheteria e
arrecadação. A força que lhe dava o misticismo ao cinema e à indústria norte-americanas
levava consigo, como a alma dos Estados Unidos, uma tensão que não era
paradoxo, se não uma falta de coesão que ao largo devia resolver-se e hoje
resolveu-se. Mas esse é um tema posterior.
Continua...
Parabéns, Rinaldi! Está ótimo o blogue.
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