de 2011 por ocasião do cinquentenário de seu livro.
Dr. Carlos Del Campo é engenheiro agrônomo formado pela Universidade Católica do Chile, com doutorado em Economia Agrária e o título de Master of Science em Economia Agrária pela Universidade da Califórnia (Berkley - EUA), é também autor do livro Is Brazil Sliding Toward the Extreme Left? (O Brasil resvalando para a extrema esquerda? – 1986) e das partes técnicas e econômicas de duas outras obras de Plinio Corrêa de Oliveira: Sou católico: posso ser contra a Reforma Agrária? (1981) e A propriedade privada e a livre iniciativa, no tufão agro-reformista (1985).
Dr. Carlos del Campo — É preciso observar que, já no título escolhido pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, está expressa de forma sintética e brilhante a idéia de que a Reforma Agrária, muito mais que um assunto econômico, é principalmente um problema moral, e em última análise um problema religioso. Ao intervir diretamente na propriedade privada individual, a Reforma Agrária envolve um direito derivado da própria natureza humana, gravado para sempre em dois Mandamentos da Lei de Deus: “Não furtarás” e “Não cobiçarás as coisas alheias”. A ordem natural e o direito que dela deriva constituem o fundamento dos Mandamentos, base da ordem moral e da doutrina social da Igreja, surgindo assim o aspecto religioso da questão. Criada por Deus e resumida nos preceitos divinos, a ordem natural exige que as nações e os indivíduos respeitem e favoreçam os direitos individuais, entre os quais a propriedade privada. Daí a importância, atualidade e acerto dos autores ao colocar esses aspectos doutrinários na primeira linha de análise da Reforma Agrária.
RA-QC demonstra com clareza e segurança que o respeito à propriedade privada e à livre iniciativa está solidamente alicerçado na doutrina social da Igreja e é indispensável ao bem comum. Entretanto esses direitos não são absolutos. Ou seja, podem surgir situações concretas em que o próprio bem comum exija limitar esses direitos. Até mesmo o direito individual à vida pode ser limitado por imposição do bem comum, como é o caso, por exemplo, de uma nação que entra em guerra para defender sua soberania. E aqui entram as considerações econômicas no estudo da Reforma Agrária. O papel da Economia é verificar se as condições concretas em que se encontra a agropecuária respeitam o bem comum; e, caso negativo, analisar se um programa de Reforma Agrária, limitando o direito de propriedade privada e a livre iniciativa individuais, representa uma verdadeira solução.
O estudo econômico demonstrou há cinqüenta anos que não existem no setor agrícola problemas que justifiquem um programa com a envergadura e as características de uma Reforma Agrária. Ficou então demonstrado que a Reforma Agrária é uma falsa solução para um problema inexistente.
Catolicismo — Por que o Sr. afirma em seu trabalho que a Reforma Agrária fracassou no Brasil?
Dr. Carlos del Campo — Tal como foi definida e é apresentada à opinião pública, a Reforma Agrária consiste na expropriação de terras particulares improdutivas, a fim de dividi-las e distribuí-las entre trabalhadores sem terra. Assim, fica no público a impressão de que o objetivo é torná-los pequenos proprietários produtivos, que passariam a oferecer alimentação farta para a população, além de gerar renda para manutenção e progresso deles próprios e de suas famílias. Porém, na prática e na realidade nua e crua, as coisas não funcionaram e não estão funcionando conforme a teoria agro-reformista apregoava.
Em primeiro lugar, a Reforma Agrária não tem criado verdadeiros proprietários agrícolas. Até fins de 2008, o INCRA incorporou cerca de 80 milhões de hectares e assentou aproximadamente 1,1 milhão de famílias. Mas diversas fontes indicam que até 1996 apenas 5,6% dos assentados tinham recebido o título de propriedade das respectivas glebas, ou seja, não se tornaram de fato proprietários. Entre 1996 e 2008, conquanto o número de assentados tivesse aumentado de 163.000 para 1.118.000, praticamente não houve novas entregas de títulos de propriedade. Segundo dados mais recentes, extraídos de estatísticas do próprio INCRA, somente 2,54% dos assentados receberam título de propriedade; com outros 2,81%, celebrou-se apenas um contrato de concessão de uso. A partir desses dados, não se pode deixar de concluir que a tão propalada meta de criar milhares de pequenos proprietários está longe de ser cumprida. O que de fato está ocorrendo é a criação de pequenos produtores, quase totalmente dependentes de um novo patrão — o Estado. Ou seja, uma verdadeira “terrabrás”, que em pouco ou quase nada difere dos famigerados e fracassados kolkhozes.
Em segundo lugar, estudos realizados ou encomendados pelo próprio governo dão base para se afirmar que o valor da renda líquida mensal gerada pelo assentado em seu lote alcança, em média, um montante da ordem de 1,5 salário mínimo (SM). Com base nos mesmos dados, é possível afirmar que em torno de 40% retiram do lote até 1 SM de renda líquida; cerca de 70% conseguem até 2 SMs. Ora, especialistas na matéria afirmam que quem ganha até 2 SMs mensais entra na classificação de pobre. Pode-se dizer, portanto, que 70% das famílias assentadas como produtores rurais são pobres. Resultado esse que obriga os assentados a procurar serviços fora do assentamento, para complementar a renda obtida no lote.
Bastam estas duas considerações para concluir que a Reforma Agrária, tal como a propaganda a apresenta à opinião publica, tem sido um fracasso.
Catolicismo — Diante do fracasso da Reforma Agrária, como o Sr. explica a insistência dos agro-reformistas em continuar com esse programa?
Dr. Carlos del Campo — A única explicação que me parece lógica é uma mudança de finalidade da Reforma Agrária. Pode-se pensar numa mudança que simplesmente “vem ocorrendo”, mas vários indícios fazem suspeitar que essa mesma mudança, só agora evidente, era desde o início a verdadeira intenção dos agro-reformistas. Passemos a analisar algumas características da atual situação.
É notório que a Reforma Agrária não pretende criar pequenos proprietários familiares. Está cada dia mais em evidência a falta de interesse das autoridades em emancipar os assentamentos mediante a concessão de títulos de propriedade individuais. As unidades familiares de produção transformaram-se em meras concessões de uso, que no entanto é prevista na legislação como situação temporária até a consolidação do assentado como produtor rural. De temporária, esta forma legal de uso da terra está se transformando em situação definitiva. Desde o início do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) do governo Sarney, essa tendência já predominava. Autoridades da época defendiam abertamente a exploração coletiva da terra (é difícil não se pensar nos kolkhozes) por meio da formação de associações de produtores e cooperativas.
Parece cada vez mais claro também que está sendo deixada de lado a idéia de que os assentados devem ter como objetivo central a maximização dos lucros individuais, produzindo com eficiência e alta produtividade de acordo com o que se espera dentro de um regime de economia competitiva. Os conceitos de eficiência, produtividade, lucro e concorrência parecem estar mudando, quando se trata dos assentamentos. Este processo de mudança ressalta claramente quando se analisa o novo sistema de assistência técnica e extensão rural em execução.
Catolicismo — O Sr. tem elementos para avaliar se essa tendência é espontânea, ou se é movida por alguma base doutrinária conhecida?
Dr. Carlos del Campo — Tudo indica que se trata de impor aos assentados um socialismo camuflado, chamado eufemisticamente de economia solidária. Em sua essência, economia solidária não é outra coisa senão uma reprodução do projeto de socialismo autogestionário, que nos anos 80 o governo socialista de François Mitterrand quis impor na França. A autogestão é uma forma de organização econômica em que os mercados são determinados por conselhos comunitários, que reúnem produtores, fornecedores, consumidores e dirigentes locais; em que a
concorrência é substituída pela solidariedade; em que o lucro é definido como “o suficiente me basta”; em que o patrão individual desaparece, sendo substituído por uma direção autogestionária constituída pelo conjunto de produtores reunidos em associações. É excluída portanto a propriedade privada individual da terra e dos meios de produção. Nessa economia, a distribuição dos excedentes é determinada por um conselho administrativo dos entes produtivos comunitários, tendo em vista de modo especial os interesses coletivos. Parece ser este o objetivo dos propulsores da economia solidária: uma sociedade organizada sob “a presença de certa ascese, uma ruptura com o ethos capitalista produtivista e consumista, que a coloca alinhada com uma economia da simplicidade”.
Em resumo, o que está no horizonte do agro-reformismo é pobreza, produção apenas suficiente e perda da iniciativa individual. Essa meta coincide com a dos ecologistas radicais, segundo os quais os padrões de consumo do mundo terão que mudar, entre eles o padrão alimentar. Caso contrário, o mundo entraria em colapso. Os recursos naturais da Terra, segundo eles, não suportam o desenvolvimento do mundo provocado pelo capitalismo. Assim, seria necessário mudar de paradigma para preservar a natureza. Mudar do máximo para o mínimo necessário, do crescimento econômico para o crescimento zero. É a economia do suficiente.
Catolicismo — Qual a avaliação que o Sr. faz da pequena propriedade agrícola?
Dr. Carlos del Campo — Parece que o Brasil caminha na contramão da História quanto ao assunto da pequena propriedade agrícola. Praticamente em todas as partes do mundo ela constitui um problema pela sua ineficiência produtiva, que leva os governos a praticar reservas de mercado e financiamentos altamente subsidiados para protegê-la da concorrência. Essa proteção, injustificável do ponto de vista econômico, termina sendo paga por toda a sociedade. Trata-se de um custo destinado a manter uma organização de baixa produtividade, desejada por razões políticas e até, em muitos casos, por razões históricas e turísticas.
No Brasil a razão é outra, pois a pequena propriedade familiar é defendida em contraposição à média e grande propriedade. Nesse sentido, continuamente surgem comentários defendendo a necessidade de uma Reforma Agrária que transforme médias e grandes propriedades em pequenas propriedades familiares, alegando serem estas mais produtivas. Entretanto, segundo as pesquisas citadas, encomendadas pelo próprio governo, cerca de 70% dos estabelecimentos familiares obtêm uma renda total mensal inferior a dois salários mínimos (valor da linha de pobreza), chegando a 80% no Nordeste. Portanto, em princípio, a criação de pequenos estabelecimentos como estratégia para diminuir a pobreza é de si ineficiente. No momento, se a maioria dos estabelecimentos fossem criados assim, isto geraria provavelmente uma renda familiar total inferior à linha de pobreza, como está ocorrendo no caso dos assentamentos da Reforma Agrária.
Da análise dos dados fornecidos pelas pesquisas decorrem pelo menos três conclusões importantes sobre a pequena propriedade familiar e sua importância na produção de alimentos:
- A maioria dos pequenos produtores familiares não oferece contribuição importante na produção de alimentos. Só 30% deles participam ativamente, e na maioria restante a participação é marginal.
- A criação de pequenos produtores familiares não garante aumento significativo na oferta de alimentos. Esta realidade é comprovada pelos pífios resultados alcançados até agora pela Reforma Agrária.
- Para que o pequeno produtor familiar consiga progredir, uma condição necessária (mas não suficiente) é ter nível de conhecimento e aptidão psicológica que o levem a trabalhar como empreendedor. Sem isso, de pouco adiantam a assistência técnica e financeira. Reserva de mercados e outras vantagens governamentais não terão efeito duradouro.
Estas considerações nos permitem concluir que a pequena propriedade familiar, como se encontra hoje no Brasil, é mais um problema do que uma solução. Antes de se pensar em aumentar seu número por meio da Reforma Agrária, seria de bom senso resolver antes os problemas do setor.
Catolicismo — O Sr. julga necessário o governo alterar os índices de produtividade mínimos, exigidos para que o proprietário rural não seja expropriado?
Dr. Carlos del Campo —A Constituição brasileira incluiu a exigência de índices mínimos de produção rural, com base no conceito de função social da propriedade, e ultimamente o governo tem manifestado a intenção de mudar os atuais índices, em vigor desde 1980. Mas de fato não existe nenhuma justificação econômico-social para que o Estado imponha índices de produtividade ao proprietário rural sob pena de expropriação, pois o mercado brasileiro de produtos agropecuários é altamente competitivo e abastece a população em abundância, gerando ademais um significativo volume de divisas indispensáveis para o desenvolvimento do País. Mais ainda, o setor agropecuário tem sido uma verdadeira âncora no controle da inflação e na estabilização da economia. Assim, pode-se afirmar com segurança que o setor agropecuário brasileiro tem sido modelo no cumprimento de sua função social no conjunto da atividade econômica.
Nada tem de errado o fato de produtores não atingirem eventualmente os índices mínimos. Situações de mercado, disponibilidade de financiamentos, restrições climáticas, aspectos técnicos, e muitos outros — são fatores que podem levar um produtor a não aproveitar toda sua “capacidade instalada”. Este é um fato corriqueiro, aliás, em qualquer atividade produtiva, e proceder dessa forma é ser eficiente. Ou seja, o produtor está assim beneficiando tanto a si próprio como à sociedade como um todo. Exigir produção maior, passando por cima destas considerações, conduz ao desperdício de recursos produtivos, causando prejuízo à sociedade em geral. Independentemente de atingir os índices de produtividade — uns produzindo mais, outros produzindo menos — o conjunto dos proprietários rurais cumpre sua função social, contribuindo de forma possante para o bem estar da Nação. Destas considerações conclui-se que a imposição de índices de produtividade e outros do gênero ao proprietário rural, sob pena de expropriação, é uma exigência legal arbitrária sem fundamento na realidade econômica e agrícola do País.
Catolicismo — Em sua opinião, quais deveriam ser os pontos essenciais de uma sã política econômica para o setor agropecuário brasileiro?
Dr. Carlos del Campo — A primeira medida indispensável é cessar a verdadeira perseguição que se exerce atualmente sobre o produtor rural. A magnitude dessa perseguição é o ponto central do livro Agropecuária, Atividade de Alto Risco, cuja leitura recomendamos. Como a Reforma Agrária em curso é uma fonte permanente de intranqüilidade, afetando os investimentos e o emprego no campo, outra medida indispensável consiste em freá-la, dando um tempo para se avaliar os seus resultados práticos bem como esses prejuízos que ela vem causando. Na mesma linha, devem ser revistas as políticas indigenistas, quilombolas e ambientais. Tal como hoje estão sendo implementadas, elas só têm atropelado direitos adquiridos de longa data, gerando graves injustiças ao proprietário rural.
Outro ponto que precisa ser reestudado são as exigências trabalhistas impostas aos produtores agropecuários, que repetem com pequenas variantes o que se exige para trabalhadores urbanos. As relações patrão-empregado devem ser condizentes com a natureza e características próprias ao campo. Impor no setor rural um teor de relações trabalhistas similar ao existente no setor de serviços e industrial prejudica especialmente o trabalhador rural e pode inviabilizar a atividade. Foi a partir de tais exigências que começou a proliferar o operariado tipo “bóia fria”, desestimulando a residência na própria fazenda e o emprego rural permanente, gerando conflitos desnecessários e acumulando problemas nas periferias das cidades. De modo geral, o que o campo precisa é de menor interferência do Estado em suas atividades — norma válida, aliás, para toda economia sadia. Cabe sim ao Estado fiscalizar a execução dos empreendimentos econômicos, mas não é aceitável o proprietário rural ser tratado como um criminoso, sujeito permanentemente a punições de toda ordem por infringir normas e portarias, na maioria das vezes arbitrárias e fora de propósito. Nesse sentido, a legislação trabalhista e ambiental tem que ser revista em profundidade.
Nessa mesma linha de raciocínio, uma economia com suas finanças públicas realmente equilibradas (e não pseudo-equilibradas contabilmente) é condição necessária para que o setor rural alcance desenvolvimento econômico-social permanente. Sem necessidade de apelar a privilégios governamentais, o setor rural merece e deveria esperar do setor financeiro um leque de opções de financiamento e de seguro agrícola compatível com a atividade.
É ainda elemento fundamental para um bom programa de política agrária a promoção da pesquisa e educação rural, para melhorar a capacitação do homem do campo. Capacitação não só técnica, mas também de administração, comercialização e de técnicas mercadológicas, mais do que nunca cruciais para conseguir êxito.
Catolicismo — Que espera o Sr. da reedição de Reforma Agrária – Questão de Consciência, meio século depois?
Dr. Carlos del Campo — A reedição dessa obra é uma iniciativa muito oportuna. O Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, principal idealizador e autor do livro RA-QC, afirmava que a América Latina rumaria para onde caminhasse o Brasil. Referindo-se às tentativas de avanço da Revolução, concluía ser indispensável barrar a Reforma Agrária socialista e confiscatória para evitar a queda do Brasil no comunismo. A luta contra a Reforma Agrária, portanto, ultrapassa de muito o âmbito rural e as fronteiras do Brasil, é fundamental para evitar o triunfo da Revolução gnóstica e igualitária e preservar os restos de civilização cristã que ainda sobrevivem. De atualidade indiscutível, essa reedição representa ainda uma homenagem e um ato de gratidão para com Plinio Corrêa de Oliveira, lutador exímio e fundador de uma nova corrente de pensamento católica contra-revolucionária, que se tem destacado de forma possante por sua eficácia e capacidade de ação em defesa dos valores perenes da civilização cristã.
Catolicismo — O que se pode esperar, em concreto, desse relançamento?
Dr. Carlos del Campo — Primeiramente podemos augurar uma mudança de atitude dos que sofrem as conseqüências danosas da Reforma Agrária, como também dos que a combatem. Não devem pensar que estão sozinhos e apenas debatendo-se em defesa de interesses pessoais, por mais legítimos que estes sejam. Devem convencer-se de que estão em jogo princípios de ordem moral, e estes são a base da ordem social desejada por Deus. Os argumentos meramente econômicos, aventados quando se trata do assunto, devem ser enriquecidos com razões doutrinárias e morais, cuja superioridade e primazia é indiscutível. Dessa forma, o combate ideológico irradiaria do setor rural para todas as atividades do País, engajando amplos setores da sociedade e constituindo reforço proveitoso a fim de evitar atitudes derrotistas do tipo “ceder para não perder”. Com a graça obtida de Deus pelos rogos da Padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, resultados enormes poderão ser alcançados, e cabe a nós empreender esforços para obtê-los.