sábado, 13 de abril de 2013

O respeito e cavalheirismo do Sonhador em Noites Brancas




Eis como as coisas se passaram:
 
Regressei muito tarde à cidade e já tinham dado as dez horas quando me aproximei da minha casa. O caminho que percorri passava junto do cais do canal, onde, àquela hora, não se encontrava vivalma. Na realidade, moro num bairro bastante afastado. Caminhava cantando, pois quando estou contente gosto de cantarolar, como qualquer homem feliz que não tenha amigos, nem conhecidos, e que nos seus momentos de felicida­de não tem com quem Compartilhar a sua alegria. Subitamente, aconteceu-me a mais inesperada das aventuras.
 Num recanto, apoiada ao parapeito da muralha, estava uma mulher. Com os cotovelos apoiados no gradeamento, parecia olhar com muita atenção a água turva do canal. Trazia um bonito chapelinho amarelo e uma encantadora mantilha negra. «É uma rapariga e certamente morena», pensei. Parecia não ouvir os meus passos e nem sequer se moveu quando passei por ela, retendo a respiração e com o coração a bater violentamente. «Estranho!», pensei «Deve ter, sem dúvida, uma grande preo­cupação»; e bruscamente detive-me, como que pregado ao solo. Sim, não me enganara: a jovem chorava. Um momento depois, ouvi um novo soluço. Santo Deus! O meu coração comprimiu-se de angústia. Embora habitualmente seja tímido com as mulheres, a verdade é que este caso era excepcional!... Voltei atrás, uns passos na sua direção e teria forçosamente dito:
 «Menina!», se não tivesse a consciência de que esta exclamação fora pronunciada já mil vezes em todos os romances mundanos. Foi a única coisa que me deteve. Porém, enquanto procurava uma palavra, a jovem recompôs-se e, dominando-se, passeou um olhar em torno de si, baixou a cabeça e deslizou à minha frente ao longo do canal. Imediatamente, caminhei em sua perseguição, mas ela, descobrindo-o, deixou o cais, atravessou a rua e foi para o passeio do outro lado. Não ousei atravessar, O meu coração palpitava como o de um pássaro apanhado numa armadilha. De súbito, uma casualidade veio em meu auxílio.
 No passeio para que a rapariga atravessara surgiu subitamente, perto dela, um cavalheiro de fraque, com uma idade muito respeitável, mas com um ar que não o era tanto. Cambaleava, apoiando-se cautelosamente nas muralhas. A rapariga caminha­va apressada e timidamente, como sucede geralmente com as raparigas que não querem que se lhes ofereça para as acompa­nhar à noite até suas casas, e, por certo, o oscilante cavalheiro nunca a teria conseguido apanhar se a minha boa estrela o não tivesse induzido a recorrer a meios de circunstância. De repen­te, sem dizer palavra, o sujeito encheu-se de coragem e, com todas as suas forças, desatou a correr em perseguição da minha desconhecida. Ela fugia, célere como o vento, mas o senhor, embora cambaleando, ia ganhando terreno, até que a atingiu. Ela soltou um grito a eu:.. dei graças aos Céus pela excelente e nodosa bengala que trazia na mão direita. Num abrir e fechar de olhos, eis-me do outro lado da rua, e, também num abrir e fechar de olhos, o intruso deteve-se, tomou em consideração o meu pesado argumento, calou-se, ficou para trás, e apenas ‘quando íamos já muito longe me apostrofou em termos assaz enérgicos. As suas palavras, porém, perderam-se na distância.
 — Dê-me o braço — disse à desconhecida —, pois assim ele não ousará voltar a abordá-la.
 Silenciosa, estendeu-me o braço ainda trêmulo de emoção e de susto. Oh, intruso, como te abençoei naquele momento! Olhei-a furtivamente: conforme calculara, era muito bela e morena; sob as suas pestanas negras brilhavam ainda pequenas lágrimas, lágrimas provocadas pelo susto recente ou pelo des­gosto que a fizera chorar junto da muralha, não sabia. Nos seus lábios, contudo, resplandecia já um sorriso. Olhou-me também de soslaio, enrubesceu levemente e baixou os olhos.
 — Está a ver, Se não me tivesse repelido, nada disto acontecido...
— Mas eu não o conhecia. Julguei que o senhor também...
— E agora, já me conhece? ­
— Um pouco. Olhe, por exemplo, porque treme?
— Oh! Adivinhou logo! — respondi, entusiasmado com o fato de aquela jovem ser inteligente: a inteligência só favorece beleza. — Sim, logo à primeira vista adivinhou quem eu era. Com efeito, sou tímido com as mulheres, não nego que estou emocionado, pelo menos tanto como a menina o estava há momentos, quando aquele sujeito a assustou... Sinto uma espécie de medo, nesta altura. Dir-se-ia que vivo num sonho, mas mesmo em sonhos nunca acreditei que poderia um dia falar com uma mulher, fosse ela quem fosse...
— O quê? Será possível?...
— Sim, a minha mão treme, pois nunca nela se apoiou uma tão linda mãozinha... Perdi completamente o hábito de lidar com mulheres; isto é, nunca tive esse hábito... Bem vê, vivo só. Nem sei como se lhes deve falar. Olhe, ainda agora, consigo, não sei se já lhe disse alguma tolice. Se assim aconteceu, diga-­mo francamente, pois aviso-a de que não sou susceptível...
— Não, não disse qualquer tolice, antes pelo contrário. E se na verdade quer que lhe seja sincera, pois bem, dir-lhe-ei que mulheres apreciam essa timidez. E se ainda quer que vá mais longe, digo-lhe que não fujo à regra e que não o despedirei até me ter acompanhado a casa.
— Dada a maneira como me está a tratar — comecei, anelante de entusiasmo —, deixarei agora mesmo de ser tímido e, então, adeus todas as minhas vantagens!...
— As suas vantagens? Mas quais vantagens? Isso é que já não está bem.
— Perdão, não insistirei. A palavra escapou-se-me. Mas como quer que num momento como este não tenha o desejo de...
— De agradar, talvez?
— É isso mesmo! Mas, por amor de Deus, seja benévola! Tente compreender-me. Tenho já vinte a seis anos, bem vê, e nunca me relacionei com ninguém. Assim, como quer que fale como deve ser, com à-vontade e oportunamente? Será melhor para ambos se falarmos com sinceridade... Quando o meu coração fala, a minha boca não se sabe calar. Bem, mas é a mesma coisa... Poderá acreditar-me? Nem uma mulher, nunca, nunca! Nem sequer um amigo! Apesar disso, todos os dias sonho que, finalmente, tarde ou cedo, encontrarei alguém. Ah, se soubesse quantas vezes me apaixonei desta maneira!
— Mas como? Por quem se apaixonou então?
— Por ninguém, por um ideal, apenas, por aquela que em sonhos me visita. Criei, nos meus sonhos, romances completos! A verdade é que não me conhece! A bem dizer, não podia ser de outra maneira: encontrei duas ou três mulheres — mas seriam elas mesmo mulheres? Eram sempre criadas ou donas de casa que... Vou fazê-la rir se lhe disser que tentei, por mais de uma vez, entabular conversa, como agora fazemos, muito simplesmente, com uma aristocrata, na rua, estando ela sozinha, evidentemente; entabular conversa, claro, timidamente, respei­tosamente, apaixonadamente. Dizer-lhe que morro de solidão, que não me repila, que não tenho maneira de conhecer nenhuma mulher, dando-lhe mesmo a entender que é dever das mulheres não recusar a tímida súplica de um homem tão infeliz como eu. Que, em suma, tudo o que peço se resume a dirigir-me algumas palavras fraternas, uma ou duas palavras de afeto, a não me repelir logo à primeira tentativa, a acreditar na minha boa-fé, a escutar o que lhe disser a zombar de mim, se assim entender, mas a dar-me esperança dizendo-me duas palavras, duas pala­vras apenas, mesmo com a condição de nunca mais nos ver­mos!... Está-se a rir... De fato, o que lhe digo não para menos...
— Não se zangue. Rio-me, pois o senhor é o seu próprio inimigo, pois, se o tivesse tentado, teria talvez obtido êxito, mesmo que isso se passasse na rua: quanto mais simples se é, melhor... Não haveria nenhuma mulher, a não ser que fosse uma tola ou então que estivesse de mau humor nesse momento, que tivesse coragem de lhe recusar essas duas palavras que lhe implorava tão timidamente... Pensando melhor, que digo eu? Certamente que o tomaria por um louco. A verdade é que julgo as outras por mim. Bem sei como esta gente é!
— Agradeço-lhe muito! — exclamei. Nem sequer pode compreender o bem que acaba de me fazer!
— Bem, bem! Diga-me lá uma coisa: como concluiu que eu era a mulher que... que o ia considerar digno de atenção, de afeto... em suma, que não era uma criada ou uma dona de casa, como as outras de que falou? Por que razão decidiu a abordar-me?
— Porquê? Porquê? Talvez porque estava só, porque aquele cavalheiro era demasiado atrevido, por ser de noite: tem de reconhecer que não podia fazer outra coisa que era o meu dever...
— Não, não. Refiro-me a momentos antes, junto da muralha.
— Não é verdade que tinha já nessa altura a intenção de me abordar?
— Junto da muralha? Mas, na realidade, nem sei como lhe responder, temo... Sabe? Hoje sentia-me feliz, caminhava, cantava, tinha ido até aos arrabaldes, nunca vivera horas de tanta alegria. E a menina.., talvez tenha sido só impressão minha.., enfim, desculpe-me se lho recordo, mas tive a impres­são de que chorava, e então eu.... não suportei tal coisa... o coração apertou-se-me... Meu Deus, não teria acaso o direito de me entristecer por sua causa? Terá sido pecado experimentar por si uma fraterna compaixão?... Desculpe, eu disse «compai­xão»... Em suma, para terminar, tê-la-ei ofendido por me ter ocorrido involuntariamente a idéia de me dirigir a si?...
— Deixe! Basta! Não continue... — interrompeu, baixando a cabeça e apertando-me a mão. — Fui eu quem andou mal em lhe ter falado nisto... Mas sinto-me feliz por não me ter enganado a seu respeito... Chegamos já perto da minha casa, é ao fundo desta rua, a dois passos daqui.. Adeus, estou-lhe muito grata...
— Então é possível? Será possível que não nos voltemos a ver... Tudo ficará por aqui?
— Está a ver? — respondeu, rindo-se. —Primeiro só queria duas palavras, e agora... Mas, de fato, não lhe direi adeus... Pode ser que nos voltemos a encontrar...
— Virei amanhã. Oh, desculpe-me, eis-me já a exigir.
— Sim, o senhor está impaciente quase exige...
Escute-me só por um momento! — interrompi-a. — Perdoe-me se lhe digo mais uma coisa... É o seguinte: não posso deixar de aqui voltar amanhã. Sou um sonhador; a minha vida real tão reduzida que momentos como estes que agora vivo são para mim de tal modo preciosos que não poderei evitar de os reproduzir nos meus sonhos. Sonharei consigo toda a noite, toda a semana, todo o ano. Voltarei obrigatoriamente aqui amanhã, justamente aqui, a este mesmo local, a esta mesma hora, e sentir-me-ei feliz por recordar o que hoje aconteceu. Doravante, este lugar é sagrado para mim. Tenho já dois ou três locais como estes em Sampetersburgo. Uma vez, cheguei mesmo a chorar por causa de uma recordação semelhante à que de si vou guardar... Quem sabe, talvez que também a si, há dez minutos, fosse uma recordação que a fazia chorar... Mas desculpe-me, esqueci-me novamente... Talvez que um dia a menina tenha sido particularmente feliz aqui...
— Bem — disse a jovem —, admitamos, voltarei aqui amanhã, às dez horas, como hoje. Vejo que não o posso impedir... A verdade é que tenho necessidade de aqui vir; não vá julgar que lhe concedo uma entrevista. Repito-lhe, tenho de vir aqui por razões pessoais. Mas, está bem... Vamos lá, dir-lho-ei com franqueza: não me desagradará se o encontrar. Além de mais, pode suceder-me algum dissabor como o de hoje... Em suma, agradar-me-ia vê-lo novamente.., para lhe dizer duas palavras. No entanto, veja bem, não vá julgar-me mal, não creia que habitualmente concedo entrevistas com tanta facilidade... Não lho faria se... Mas isto é o meu segredo! Só lhe ponho previamente uma condição...
— Uma condição? Fale, diga, diga já tudo; estou de acordo com tudo, estou pronto para tudo! — exclamei, entusiasmado. — Respondo por mim, serei obediente, respeitoso... bem me conhece...
— Justamente porque o conheço é que o convido para amanhã — respondeu, rindo. — Conheço-o já perfeitamente. Mas aten­ção, só pode vir com uma condição (seja suficientemente bom para fazer o que lhe peço, bem vê que lhe falo francamente): não se apaixone por mim... É impossível, asseguro—lho. Se quiser vir por amizade, será bem-vindo, aqui tem a minha mão... Mas por amor, não, suplico-lhe!
— Juro-lho! — exclamei, segurando a sua minúscula mão...
— Basta, não jure nada: sei que o senhor é inflamável como a pólvora. Não me censure por lhe falar assim. Se soubesse... Também eu não tenho ninguém com quem trocar palavras, a quem pedir um conselho. Como é evidente, não é na rua que se deve procurar conselheiro, mas o senhor é uma excepção. Conheço-o como se fôssemos amigos há vinte anos... Não é verdade que não me trairá?...
— Vai ver... Só não sei como vou passar toda esta noite e todo o dia de amanhã.
— Durma bem. Desejo-lhe, uma boa noite e lembre-se de que confiei em si. O senhor ainda há pouco dizia que é preciso darmos conta de cada um dos nossos sentimentos, até mesmo de uma fraterna amizade! Disse isso de tal modo que subitamente me ocorreu a idéia de lhe confiar...
— O quê, por amor de Deus? Confiar-me o quê?
— Até amanhã! Que isso permaneça por ora como um segre­do. E melhor para si: pelo menos, assim isto parecer-lhe-á um romance. Pode ser que lho diga... Falaremos primeiro e travare­mos um conhecimento mais amplo...
— Eu contar-lhe-ei amanhã toda a minha história! Mas o que se passa? Dir-se-ia que algo de prodigioso me aconteceu... Onde estou eu, meu Deus? Então, diga-me: não se sente contente por não se ter zangado comigo, como teria sucedido com qualquer outra, de não me ter imediatamente repelido? Em dois minutos tomou-me feliz para sempre! Sim, feliz! Quem sabe, talvez tenha conseguido reconciliar-me comigo mesmo, resolvido as minhas dúvidas... Talvez que fique para sempre preso a estes minutos... Enfim, amanhã contar-lhe-ei tudo, saberá tudo...
— Está bem, aceito. O senhor falará primeiro....
— De acordo.
— Até amanhã!
— Até amanhã!
E separamo-nos. Caminhei pelas ruas durante toda a noite: não me decidia a voltar ao meu quarto. Sentia-me tão feliz...
«Até amanhã!»

Noites Brancas - Fiódor Dostoievski

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Ciência e ignorância

Porque tu és grande, Senhor, e pondes os olhos nas coisas humildes, e as elevadas as conheces de longe, e não te aproximas senão dos contritos de coração. Nem és encontrado pelos soberbos, ainda que sua curiosa perícia seja capaz de contar as estrelas do céu e as areias do mar; seja capaz de medir as regiões do céu e de investigar o curso dos astros.

Com a inteligência e o engenho que lhes deste investigam os segredos do mundo, e descobriram muitos deles; predisseram com muitos anos de antecedência os eclipses do sol e da lua, no dia e hora em que hão de suceder, sem que nunca lhes falhasse o cálculo, acontecendo sempre tal e como haviam anunciado. Deixaram ainda por escrito as leis por eles descobertas, as quais ainda hoje se lêem, e de acordo com elas se prediz em que ano, e em que mês do ano, e em que dia do mês, e em que hora do dia, e em que parte de sua luz se hão de eclipsar o sol e a lua; e tudo acontece como está predito.

Admiram-se disto os ignorantes, e pasmam. Os sábios gloriam-se disso, e se desvanecem, e com ímpia soberba afastam-se e se eclipsam de tua luz. E, prevendo com exatidão o eclipse vindouro do sol, não vêem o seu, que já está presente. Não procuram religiosamente saber de onde lhes vem o talento com que investigam essas coisas e, achando que tu as criaste, não se entregam a ti, para que conserves o que lhes deste, nem se te oferecem em sacrifício, como se tivessem feito a si mesmos; nem dão morte às suas soberbas, que alçam vôo como aves do céu; nem às suas insaciáveis curiosidades que, como peixes do mar, passeiam pelas secretas sendas do abismo; nem às suas luxúrias, que os igualam aos animais do campo, a fim de que tu, ó Deus, fogo devorador, destruas estas suas preocupações de morte, e os torne a criar para uma vida imortal.

Mas não conheceram o caminho, o teu Verbo, por quem fizeste as coisas que numeram, e a eles próprios que as numeram, e os sentidos com que percebem as coisas que numeram, e a mente graças à qual as numeram. Tua sabedoria escapa aos números. Teu Filho Unigênito se fez para nós sabedoria, justiça e santificação, e foi contado entre nós, e pagou tributo a César. Não conheceram este caminho, por onde desceriam de seu orgulho até ele, e por ele subiriam até ele; não conheceram, digo, este caminho, e se julgaram mais elevados e resplandecentes que estrelas, e assim vieram a rolar por terra, e seu coração insensato se obscureceu.

Dizem muitas coisas verdadeiras acerca das criaturas; mas, como não procuram piedosamente a Verdade, isto é, o autor da Criação, não o encontram; e, se o encontram reconhecendo-o por Deus, não o honram como a Deus, nem lhe dão graças. Antes, se desvanecem em seus pensamentos, e se dizem sábios, atribuindo a si próprios o que é teu. Atribuem a ti, com perversa cegueira, suas mentiras, a ti, que és a própria Verdade; alteram a glória de um Deus incorruptível, concebendo-a à semelhança e imagem do homem corruptível, das aves, dos quadrúpedes, das serpentes. E convertem tua verdade em mentira, e adoram e servem antes à criatura do que ao Criador.

Eu porém guardava muitas de suas opiniões verdadeiras acerca das criaturas, cuja explicação encontrava nos números, na ordem dos tempos e no testemunho visível dos astros; comparava-as com os ensinamentos de Manés, que escreveu sobre essas matérias numerosas e delirantes loucuras, sem achar nenhuma explicação para os solstícios e equinócios, os eclipses do sol e da lua, e para outras coisas, enfim, das quais tomara conhecimento pelos livros da sabedoria profana.

Contudo, exigia-me que acreditasse nessas doutrinas, embora não concordassem absolutamente com meus cálculos e com o que meus olhos testemunhavam.

Senhor, Deus da verdade, acaso te agradará quem conhecer essas coisas? Infeliz do homem que, conhecendo-a todas, te ignora ti; mas feliz de quem te conhece, embora as ignore! Quanto ao que conhece a ti e a elas, este não é mais bem-aventurado por causa de seu saber, mas só é feliz por ti, se, conhecendo-te, te glorifica como Deus, e te dá graças, e não se desvanece em seus pensamentos.

É melhor aquele que reconhece estar na posse de uma árvore e te dá graças por sua utilidade, embora ignore quantos côvados tem de altura e de largura, que o que a mede, e conta todos os seus ramos, mas não a possui, nem conhece, nem ama a seu Criador. Assim o homem fiel, a quem pertencem todas as riquezas do mundo, e que, nada possuindo, possui tudo, por estar unido a ti, a quem servem todas as coisas – embora desconheça até o curso das estrelas da Ursa – e seria insensatez duvidar – é certamente melhor do que o que mede os céus, conta as estrelas e pesa os elementos, mas despreza a ti, que dispuseste todas as coisas em número, peso e medida.

Santo Agostinho - Confissões

Cinema: Rashomon (1950), de Kurosawa

Rashomon (Às Portas do Inferno), filme de 1950 do cineasta japonês, budista e pagão Akira Kurosawa. Mesmo pagão, os filmes de Kurosawa são de grande valor, por "não cairem no ordinário, no comum e abordarem temas como o mistério da presença do mal no mundo" (Carlos Nougué).


"O enredo de Rashomon aborda a natureza humana no que tem de pior, e mostra a mesquinhez dos personagens com diferentes versões de um fato ocorrido, levando o espectador a crer na relatividade das circunstâncias. Mas, no fim, há o resgate da verdade una, o certo como certo e o errado como errado. E a redenção do gênero humano através da caridade e da compaixão. A fotografia é exuberante e a música, belíssima." (Kagimura)

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Cinema: Nostalgia, de Andrei Tarkovski

 Por Carlos Nougué

Prometi, há uns dias, falar de certos filmes; não recordando agora, porém, quais fossem, tratarei aqui de Nostalgia (Nostalghia), do russo Andrei Tarkovski.
Quanto ao Russo, sintetizam-no estas palavras do cineasta sueco Ingmar Bergman: “Tarkovski tem a chave de uma porta cinematográfica que nunca consegui abrir.” Que porta? A porta que eleva a arte a Deus, dado que Bergman é um atormentado ateu, e que Tarkovski era um homem de fé, além de contar-se entre os maiores artistas de todos os tempos.

Este filho de um grande poeta russo estava exilado da URSS, por razões, entre outras, religiosas, quando realizou Nostalgia com a equipe de Bergman. Por encomenda do estado dirigira ele Solaris, uma ficção científica com que a burocracia soviética pretendia rivalizar com um filme norte-americano ambíguo, falho e nietzschiano-gnóstico, mas de sucesso internacional – 2001, Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick.[1] De fato, Solaris também obteve êxito internacional, mas por razão inversa à esperada pelos truculentos burocratas: com música de Bach para os momentos agudos, o filme é uma dramática paráfrase da Parábola do Filho Pródigo, construída em ritmo litúrgico. E já quando, junto com o seu ator principal, reside Tarkovski na Itália, morrendo de saudade da mulher e do filho pequeno, lacerando-se de nostalgia da pátria, dos seus campos (ele era de classe média camponesa), da sua relva penteada pelo Sopro de Deus, e preparando-se para filmar Nostalgia, descobre que ele e o seu ator têm, ambos, câncer de pulmão. Tristeza rói e mata. Logo o amigo falece, e ele, aos 40 anos, em 1979, é também desenganado pelos médicos. Abandonado pela Igreja Ortodoxa Russa (cuja alta hierarquia estava toda vendida ao regime comunista) e pela “Igreja Católica” (que então se dava muito bem com os proponentes da perestroika e da glasnost), Tarkovski abre-se, desgraçadamente, a experiências e doutrinas “esotéricas” do Oriente, o que porém ainda não se refletirá em Nostalgia.[2]
Pois Nostalgia é, precisamente, a história de um poeta russo que se encontra na Itália. (Contarei a história porque, evidentemente, a fruição dos filmes de Tarkovski não depende de nenhum elemento surpresa; conquanto saiba perfeitamente, por outro lado, que nenhuma arte é nem sequer razoavelmente traduzível pela linguagem corrente: só na relação direta com cada espectador, ou contemplador, ou leitor, ou ouvinte pode a obra de arte dar-se inteira, em toda a sua complexidade simbólica e parabólica.) Está o poeta russo, prossigo, gravemente enfermo do coração, e é ciceroneado por uma jovem loura — muito bela, e burguesa, e fútil — que se apaixona por ele. Ainda no início da narrativa, dirigem-se os dois a uma igreja românica de pedra, a de Nossa Senhora do Parto. E a certa altura, com a câmera fixada na jovem, ouve-se a voz do sacristão, que insiste e insiste em que ela se ajoelhe. Em verdade, esta voz representa “os gemidos inefáveis de Deus” na alma do pecador renitente, e de fato a moça não consegue dobrar-se para o ato de submissão ao Senhor; é cena tensa, a expressar todo o drama da salvação/condenação. Em seguida se passa para uma fiel coberta de véu negro, a qual, diante da imagem da Virgem do Parto, e cercada de intenso vermelho produzido pela chama de muitas velas, lhe roga a fertilidade, enquanto lhe abre a veste — sai, então, do ventre da Virgem uma revoada de passarinhos, adejando Vida. Muda-se a cena para o exterior da igreja, onde o poeta russo, olhando, melancólico, para um chão coberto de bruma, recebe sobre si uma pena que cai lentamente — fina metáfora da descida da Graça sobre o pecador, cujos fins e resultados se verão ao longo do filme.
Avança o filme entre recordações doídas mas belas da terra natal, da mulher, da filha, do seu pastor belga, e o poeta russo acaba por conhecer, numa terma,[3] um louco, que uns dizem santo, e que profetiza o fim do mundo, o fim do planeta. Para evitá-lo, diz o louco ao russo, é preciso que alguém se exponha ao sacrifício, ao ridículo de atravessar a terma seca com uma vela acesa na mão; ele próprio, o louco, não o pode fazer, porque não lho permitiriam. Muitas cenas depois — entre as quais há uma, passada no quarto do hotel onde se hospeda o poeta, na qual a loura lhe exibe fugazmente um seio (coisa desnecessária e censurável), mantendo-se ele, entretanto, fiel à esposa amada e distante —, o louco imola-se, entre chamas, ostentosa e infrutiferamente, pela salvação da Terra. O poeta, porém, entendendo já a essência e o fim do sacrifício (que ou será cristão, ou não será verdadeiro sacrifício), acaba por assumir o ridículo de, como louco de Deus, atravessar a terma seca com a vela acesa. Fá-lo-á pela salvação dos homens para a vida eterna. Está tocado pelo Espírito, e o dom natural da coragem muda-se-lhe em disposição para o martírio.
Temos, então, dez minutos de lenta travessia da terma, travessia cheia de idas e voltas (cada vez que se apaga a vela, torna o poeta ao ponto de partida). É aqui, nesta cena máxima do cinema — filmada em plano-sequência (ou seja, sem cortes e com a câmara em movimento, aqui, lento), ao som do ofegar do atravessador e, ao final, com progressivo close das mãos com a vela[4] —, que se revela quão impregnado estava Tarkovski do ritmo litúrgico. Símbolo solene, conquanto remoto, do sacrifício de Cristo, esta cena o é também, e sobretudo, do sacrifício de cada cristão e da sua travessia para a morte: quando finalmente chega ao seu termo, o poeta russo solta um grito abafado, e cai morto de enfarte.


E eis-nos diante da última cena, em que a câmera fixa o poeta (a sua alma, ou ele inteiro e ressurrecto — como sabê-lo?) semideitado diante de um muro de antiga catedral italiana, tendo por companhia o pastor belga. Permanece tudo estático por algum tempo, quando, de súbito, começa a nevar: amalgamam-se, assim, na vida perdurável, as pedras cristãs da Itália e a neve da sua amada Rússia. Regenerou-se, misteriosamente, toda a criação. E acabou-se o exílio. Está-se já, e para todo o sempre, na Pátria.

Novembro de 2002



[1] O qual porém tem uma sequência antológica: o baile dos astros ao som de Danúbio Azul, valsa de Johann Strauss.
[2] Tal só sucederá no seu último filme, Sacrifício, em que todavia  ainda se vê um fundo cristão.
[3] Um estabelecimento de águas medicinais que fora frequentado por Santa Catarina de Sena.
[4] O término deste close é o ápice sublime da cena, e lembra a gravura Mãos em Oração, de Albrecht Dürer.