Nós a havíamos visto pela primeira vez em Loughram Street,
apanhando água num chafariz público com uma criança nos braços – um robusto
bebê de nove meses, amarrado por um xale esfarrapado aos seus ombros franzinos.
Seu nome era Rose Donegan e devia andar pelos quatorze anos. Tinha cabelos
ruivos e profundos olhos azuis que não sei por que pareciam imensos em seus
rostinho sério. Três outros garotinhos, cujas idades variavam entre cinco e
nove anos, penduravam-se à sua saia e uma certa semelhança de traços bem como o
mesmo tom vermelho de seus cabelos revelavam serem todos Donegans.
O contraste entre a sujeira do seu aspecto e o intrépido
brilho de seu olhar, despertou-nos, a mim e meu amigo Hugh, a curiosidade.
Começamos por dar-lhe bom dia e, depois de algum tempo, essa saudação
arrancou-lhe um grave e tímido sorriso de resposta. Aos poucos – pois sua
reserva não era fácil de vencer – fomos nos tornando amigos.
Soubemos então que Rose, os três garotinhos e o Michael, o
pequerrucho de braço, tinham perdido a mãe havia oito meses. Viviam com o pai,
Danny Donegan, num porão do superlotado viveiro humano de Loughram Street.
Danny, que trabalhava de vez em quando nas docas, era um sujeito fraco mas de
índole extremamente bondosa. Falava macio e vivia cheio das melhores intenções,
gastando todavia a maior parte do seu tempo e do seu dinheiro ali perto mesmo,
no Shamrock Bar. Assim, pois, racaira sobre os ombros de Rose o pesado encardo
de cuidar da casa, mantendo limpos e arrumados os seus dois únicos cômodos,
tratar do pai vagabundo, salvar o melhor que podia os restos do que ele
ganhava, cozinhar e olhar as crianças.
Embora Rose dedicasse grande afeto a todos, tinha por Michael
verdadeira adoração. Nas tarde de sol, quando o levava até os arredores do
Phoenix Park, quase não podia caminhar com o peso do menino, mas nem por isso
desanimava. Nada a desanimava. Quando a víamos passar com ar resoluto pela
calçada suja e apinhada de gente, desempenhando algum serviço de rua,
pechinchando com o açougueiro para obter por menor preço um pedaço de pernil,
ou persuadindo o padeiro a fiar-lhe um pão extra, maravilhavamo-nos diante da
sua têmpera. Rose não era cega aos olhares que lhe lançavam. Possuia a
precocidade de entendimento própria das crianças criadas em cortiços – uma compreensão
absolutamente natural dos rudes mistérios da vida mesclada a uma sublime
inocência. Aqueles grandes olhos pensativos a brilhar em seu rostinho sujo
encerravam a sabedoria de todos os tempos. Mais do que isso, porém, havia neles
uma inesgotável fonte de amor.
Nosso interesse inicial por essa menina transformou-se
gradualmente em profunda preocupação. Sentíamos que devíamos fazer alguma coisa
por ela e, tendo por acaso descoberto que o seu aniversário estava próximo,
compramos-lhe algumas roupas numa loja de O’Connell Street e demos ordem para
que o pacote lhe fosse entregue. Era bom imaginá-la metida num vestido de lã
bem quente, com sapatos novos, meias e tudo o que lhe faltava.
Passamos alguns dias sem vê-la, mas regozijavamo-nos só de
imaginá-la decentemente trajada, indo toda orgulhosa à Missa de domingo, os
sapatos novos a ranger triunfalmente ao longo da nave. Todavia, quando a vimos
na segunda-feira seguinte, com grande espanto verificamos que continuava
maltrapilha como sempre, levando às costas o irmãozinho envolto no mesmo xale
esfarrapado.
- Onde estão suas roupas novas? Perguntou-lhe Hugh.
Ela corou até à raiz dos cabelos e respondeu:
- Foram os senhores?
E após uma longa pausa, sem olhar para nós, acrescentou
simplesmente:
- Estão empenhadas. Não tínhamos nada em casa, Michael
precisava tomar o seu leite.
Ficamos a olhá-la em silêncio. Iria ela sacrificar-se sempre,
renunciar a tudo o que era seu em favor daquele irmãozinho? Só se eu não
pudesse impedi-lo. No dia seguinte fui procurar o padre Walsh, vigário da
paróquia a que pertencia Loughran Street.
Sua fisionomia iluminou-se quando lhe falei de Rose, e depois
que fiz o meu pedido meditou por alguns instantes e sacudiu a cabeça em lenta
aquiescência.
- Poderíamos levá-la para passar uns tempos no campo. Tenho
uns amigos... os Carrolls... gente muito boa... em Galway. Mas o senhor fica
encarregado de persuadi-la.
E com um sorriso de pena acompanhou-me até à porta.
- Ela é uma perfeita mãezinha, acrescentou. É essa a força
que lhe enche a vida.
Uma semana mais tarde, após uma troca de cartas dirigi-me
cheio de determinação para Loughran Street. As crianças estavam sentadas em
torno da mesa enquanto Rose, com uma expressão preocupada, cortava em fatias os
restos de um pão.
- Rose, disse eu, você vai viajar.
Ela ergueu os olhos para mim sem compreender, afastando uma
mecha de cabelo que lhe caíra sobre a fronte contraída.
- Para Galway, prossegui. Apenas por quinze dias. Para uma
granja, onde você não terá nada que fazer além de dar comida às galinhas,
correr pelos campos e beber litros de leite.
Por um momento a esperança estampou-se em seu rosto, mas logo
se apagou. Ela meneou a cabeça.
- Não, tenho que cuidar das crianças... e de papai.
- Já está tudo arranjado. As enfermeiras cuidarão deles. Você
precisa ir, Rose, pois do contrário acabará adoecendo.
- Não posso, teimou. Não posso abandonar meu irmãozinho.
- Essa desculpa não serve. Você poderá levá-lo.
Seus olhos cintilaram. Mais cintilantes porém se tornaram
quando no dia seguinte a metemos no trem com o irmãozinho. Quando a máquina
arrancou, ela embalava o menino com os joelhos magros e murmurava-lhe aos
ouvidos:
- Você vai ver as vaquinhas, Michael...
Causavam-nos um alegrão as notícias que os Carrolls nos
mandavam deles. Rose estava engordando e ajudava nos trabalhos da granja. Seus
próprios postais escritos com dificuldade deixavam transparecer uma felicidade
que jamais conhecera antes – e terminavam invariavelmente com um entusiasmado
relato de como Michael gostara da vida de campo.
As duas semanas passaram depressa. Quando estavam para
terminar, estourou a bomba. Os Carrolls desejavam adotar Michael. Eram uma
casal idoso, sem filhos, e de posses. Tinham-se afeiçoado ao menino e poderiam
oferecer-lhe vantagens muito maiores do que as que poderia desfrutar em seu
lar.
Danny, naturalmente, achou a oportunidade “estupenda”. Mas
era preciso considerar Rose, e a decisão ficou dependendo dela. Nenhum de nós
soube qual fora essa decisão, ou quanto lhe custou tomá-la, senão depois que
voltou... sozinha.
Alegrou-se ao rever os outros irmãos e o pai, mas durante
todo o trajeto da estação para casa manteve-se calada e retraída.
- Foi para o bem dele, suspirou afinal. Eu não podia servir
de obstáculo à sua felicidade.
Chegados que fomos a Loughran Street, controlou-se e
reassumiu o seu antigo posto. Tornara-se até mais consciente do que antes.
Instado por ela, Danny assinou o termo de adoção. Parecia regenerado, mas não
havia garantia alguma de que continuasse assim; todavia, enquanto não bebeu e
se conservou no emprego, Rose pôde retirar do prego as coisas que empenhara, de
maneira que os dois cômodos de porão tomara jeito de casa. Em alguns sábados
conseguia até guardar alguns xelins na lata de chá improvisada em cofre que
ficava sobre a lareira.
Chegavam boas notícias sobre os progressos do pequerrucho. Os
pais adotivos de Michael não poupavam esforços para fazê-lo feliz: já se
referiam ao menino como se fosse realmente filho deles. Mas eis que uma bela
manhã chega uma carta diferente. Michal apanhara uma pneumonia. Rose ficou
olhando para a carta com as faces lívidas e os lábios apertados. Depois
encaminhou-se como uma autômata para o cofrinho de lata que estava sobre a
lareira e contou o dinheiro da sua passagem.
- Vou para junto dele.
Pôs de lado todas as objeções. Pois não sabiam que ela
conseguia qualquer cosia do menino – fazia-o aceitar os alimentos quando tinha
febre e tomar os remédios quando estava inquieto? Bastava afagar-lhe a
cabecinha e ele adormecia. Com uma expressão fixa, preparou-se para a viagem,
arranjou com uma vizinha para cuidar dos outros irmãos e foi de bonde para a
estação.
Nessa mesma noite, na granja dos Carrolls, não houve quem a
demovesse do propósito de ser a enfermeira de Michael. Por intermédio do padre
Walsh foi que viemos a saber depois o que se passou.
A moléstia fôra grave. O pior era a tosse. Com o braço
servindo de apoio à cabecinha de Michael, indiferente ao perigo a que se
expunha, Rose amparava-o até que os acessos passassem. Desvelou-se dia e noite
junto dele.
Por fim a crise cedeu; disseram-lhe que Michael ia ficar bom.
Ela ergueu-se do seu posto à cabeceira do doentinho e comprimiu a fronte com as
mãos. Estava tonta.
- Agora posso descansar, murmurou sorrindo. Estou com uma dor
de cabeça tão horrível...
Apanhara a doença de Michael. Mas o germe não lhe atacara os
pulmões. O que aconteceu foi muito pior. Teve uma meningite pneumocócica e não
chegou a recuperar a consciência. Como já disse, Rose tinha apenas quatorze
anos.
Muitos
anos depois fiz uma visita ao túmulo de Rose. No cemitério deserto, de chão úmido
e turfoso, manso vento oeste soprava dos lados da baía de Galway, trazendo das
habitações rurais caiadas de branco dos arredores, o cheiro acre da turfa
queimada – o hálito, a própria alma da Irlanda. Não havia coroas sobre a
sepultura rasa coberta de mato, mas, semi-oculto na relva, um pezinho de
roseira-brava ostentava na ponta da haste espinhenta uma única e singela rosa
branca. E de súbito, rompendo as nuvens cinzentas, o sol apareceu, iluminando
com todo o seu esplendor a alva flor e a pequena lousa branca onde se lia o seu
nome.
Pelos Caminhos de Minha Vida - A. J. Cronin
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