Extraído de 'A Existência na Filosofia de S. Tomás', de Etienne Gilson.
A natureza e o significado da obra de Tomás de Aquino não podem ser cabalmente compreendidos por aqueles que a abordam, de maneira direta, como se nada houvera antes dela. Quando começou a ensinar a Teologia, e, mais tarde, a Filosofia, Tomás de Aquino estava bem ciente da situação geral em que seu trabalho iria colocar-se.
Até os últimos anos do século XII, quando o mundo cristão descobriu a existência de interpretações não cristãs do universo, a Teologia cristã nunca se interessara pelo fato de que uma interpretação não cristã do mundo, como um todo, inclusive do homem e do seu destino, fosse ainda uma possibilidade aberta. Quando Tomás de Aquino começou a construir sua doutrina, vale dizer, de 1253 a 1254, a descoberta da filosofia grega pelo ocidente cristão era fato consumado — e nada devia ao próprio Tomás de Aquino. Sem dúvida, seus últimos comentários sobre Aristóteles muito contribuíram para mais exata interpretação da doutrina do filósofo, mas quem pretendesse que S. Tomás, a essa altura, por volta de 1250, estivesse descobrindo o mundo dos filósofos gregos, simplesmente se revelaria atrasado de 50 anos pelo menos. Nessa época todos os mestres cristãos sabiam que era possível apresentar uma explicação não-cristã do mundo, e sabiam em que ela consistia, ao menos em linhas gerais. Mas a questão da atitude apropriada a tomar-se a propósito desta explicação era complexa. Cada mestre teve de expor sua resposta a essa indagação.
Para um homem do século XIII, na Europa Ocidental, que era “ser filósofo”? Entre muitas outras coisas ser um pagão. Filósofo era um daqueles que, nascidos antes de Cristo, não puderam informar-se a respeito da verdade da Revelação Cristã. Tal era o caso de Platão e Aristóteles. O Filósofo, por excelência, era um pagão. Outros, nascidos depois de Cristo, eram infiéis. Tal o caso de Alfarabi, Avicena, Gabirol e Averróis. De qualquer modo, pode-se dizer que a primeira conotação da palavra filósofo era: pagão. Nada há de absoluto no uso das palavras: sem dúvida podem encontrar-se exceções. Boécio, por exemplo, foi às vezes chamado de “filósofo” e contado entre eles. Era, porém, excepcional este emprego do termo. Ao contrário, casos sem número se podem citar em que é certa a conotação pagã da palavra “filósofo”.
Cumpre, todavia, notar que isso era uma questão de costume, não de definição. Ao definir a Filosofia, nenhum teólogo do século XIII teria dito que ela é, por essência, pagã. Convidado a definir um filósofo, o mesmo teólogo provavelmente não diria que alguém não poderia ser filósofo se não fosse pagão. Ressaltamos apenas que, de costume, quando o teólogo dizia “os filósofos” ou “um filósofo”, tinha quase sempre em mente um homem que, não sendo cristão, dedicara sua vida ao estudo da Filosofia.
O paralelo entre “philosophi” e “sancti“, usado com freqüência pelos teólogos do século XIII, confirma nossa observação. Alberto Magno não hesita em citar duas séries diferentes de definições da alma: uma dos sancti, outra dos philosophi. Um filósofo, portanto, não era um “santo” (santo, não no sentido de canonizado, mas no de uma pessoa santificada pela graça do batismo cristão). Se um teólogo julgasse conveniente recorrer à Filosofia nos seus trabalhos teológicos, como foi o caso de S. Tomás de Aquino, não era normalmente chamado “filósofo”, e, sim, philosophans theologus (teólogo filosofante), ou, simplesmente, philosophans (um filosofante). A julgar pelo modo de falar, parece que não passava pela mente dos teólogos do século XIII que um homem pudesse ser a um tempo ambas as coisas: “filósofo” e “santo”.
Uma das conseqüências disso era que a Filosofia, na sua realidade concreta, se apresentava ao espírito de muitos teólogos como uma massa indiferenciada em que se encontrariam as lições de quase todos aqueles que, ou por não estarem ao corrente da verdade cristã, ou por não a terem aceito, tentaram obter uma visão consistente do mundo e do homem com os recursos apenas da razão. Este conglomerado filosófico é bem representado na enciclopédia de S. Alberto Magno, cujos elementos, tomados de todas as fontes disponíveis, se fundem e se reduzem a um espécie de unidade livre. Se conhecêssemos melhor tais enciclopédias, como a monumental Sapientiale de Tomás de York, elas nos dariam uma visão mais nítida do que representava a palavra filosofia para um teólogo do século XIII. Aristóteles está lá, especialmente na interpretação averroista; Platão, Avicena, Cundissalino, Gabirol, Cícero, Macróbio, Hermes Trismegisto, em resume, está representada toda a literatura filosófica disponível naquela época.
Menção especial deve fazer-se à influência dos mestres em artes nas primeiras universidades européias. Devendo ensinar a doutrina de Aristóteles, precisavam averiguar antes o sentido exato dos seus escritos. Ao fazê-lo, naturalmente tinham de dissociar deles os elementos de fé e de teologia cristã, mas tinham de dissociar também os elementos estranhos introduzidos pelos intérpretes. É revelador o fato de S. Tomás de Aquino, no Comentário das Sentenças de Pedro Lombardo, considerar ainda o Liber de Causis um autêntico trabalho de Aristóteles. Trata-se de algo mais do que um mero caso de falsa atribuição. Para atribuir o Liber de Causis plotiniano a Aristóteles é preciso que se tenha uma noção muitíssimo vaga do sentido global da metafísica de Aristóteles.
Nos anos em que esteve na Itália, de 1259 a 1268, S. Tomás de Aquino teve à sua disposição as traduções de obras de Aristóteles, ou as revisões de traduções, feitas por Guilherme de Moerbeka, e aproveitou-se dessa oportunidade para escrever comentários à doutrina do Filósofo. É difícil caracterizar em poucas palavras o novo Aristóteles visto por S. Tomás. Alguns de seus traços, pelo menos, no entanto, são facilmente visíveis. Rigorosamente falando, não é exato dizer que Tomás batizou Aristóteles. Ao contrário, em todo lugar em que Aristóteles ou contradiz a verdade cristã (eternidade do mundo) ou simplesmente a desconhece (criação ex nihil), S. Tomás ou o diz com franqueza, ou, ao menos, não lhe atribui o que ele não disse de modo expresso. Por exemplo, é notável que, ao comentar a Metafísica de Aristóteles, na qual a causalidade do Primeiro Motor é tão importante, S. Tomás de Aquino não usou uma vez sequer a palavra criação. Aristóteles não enunciara toda a verdade filosófica, e S. Tomás estava bem ciente disso.
Por outro lado, S. Tomás de Aquino viu com clareza que, nos escritos de Aristóteles, tais como os temos, alguns pontos não estão determinados de maneira completa. Em tais casos, nenhuma razão há para que a intrepretação da doutrina atribuída ao filósofo seja escolhida necessariamente no termo que menos facilite reconciliá-la com os ensinamentos da fé Cristã. No problema do intelecto agente, por exemplo, havia em Averroes um perceptível endurecimento da posição de Aristóteles. Tomás não achou útil tornar o aristotelismo mais frontalmente oposto à verdade cristã do que já o era nos trabalhos autênticos do próprio Aristóteles. Em resumo, pode-se dizer que Tomás removeu de Aristóteles todos os obstáculo à Fé Cristã não evidentes nos escritos dele. Seja como for, se batizou Aristóteles, não o fez nos “Comentários”, e sim, antes, nos seus escritos pessoais de Teologia. Assim procedendo, o batismo produziu seu efeito normal: primeiro teve de morrer o vetus homo para que nascesse um novo homem. O nome deste novo cristão havia de ser um nome cristão. Não seria Aristóteles: o seu verdadeiro nome seria S. Tomás de Aquino.
Depois de remover tais obstáculo desnecessários, S. Tomás de Aquino encontrou-se em posição bem diferente ao dos demais teólogos. Sem chegarmos ao ponto de afirmar que este Aristóteles purificado se identificou com a própria filosofia de S. Tomás de Aquino, devemos, pelo menos dizer que Aristóteles, para ele, se torno a verdadeira encarnação da verdade filosófica. S. Tomás viu, então, até onde poderia ir a filosofia na linha do pensamento. Além disso — fato muito importante — obtivera uma noção clar do que é filosofia, e isto despojou-o de muitas facilidade de que os teólogos anteriores haviam feito uso generoso.
S. Tomás não podia contentar-se com recorrer, em cada caso particular, à filosofia que, naquele ponto preciso, fosse mais facilmente conciliável com o cristianismo. Por exemplo: não podia aceitar a definição da alma humana formulada por Aristóteles, e, ao mesmo tempo, buscar em Platão a demonstração da imortalidade da alma. É importantíssimo ter em mente, ao abordar os trabalhos de S. Tomás de Aquino, que ele não mais podia contentar-se com um ecletismo filosófico na elaboração de sua teologia, uma vez que compreendera o que é, realmente, uma visão filosófica do mundo. Se sua teologia devia utilizar-se da Filosofia então cumpria-lhe estabelecer sua própria filosofia. Em outras palavras, como teólogo, S. Tomás precisava de um conjunto de princípios filosóficos aos quais recorreria sempre que necessário no curso dos trabalhos teológicos. Em termos gerais, estes princípios podem considerar-se “uma reinterpretação — das noções fundamentais da metafísica de Aristóteles, à luz da verdade cristã.” As três noções — ser, substância e causa eficiente — podem definir-se, praticamente no tomismo, pelos mesmos termos da doutrina aristotélica: certo é, porém, que as velhas palavras de Aristóteles recebem, no tomismo, sentido inteiramente novo.
Daí vem a possibilidade, sempre aberta, de reduzir-se a doutrina de S. Tomás de Aquino à de Aristóteles. Pelo menos podem atribuir-se corretamente duas metafísicas diferentes a S. Tomás, a metafísica de Aristóteles ou a que é própria a S. Tomás de Aquino — pois que a linguagem técnica permanece praticamente a mesma.
O fato acarretou duas conseqüências para a teologia tomista. Primeiro, S. Tomás teve de submeter a um exame crítico o ecletismo filosófico de seus predecessores. Como ele não se contentaria, ao discutir problemas teológicos, com recorrer, em cada caso particular, à filosofia que lhe permitisse reconciliar razão e revelação como mínimo esforço possível, teve de eliminar todas as posições teológicas que, aceitáveis embora no ecletismo, eram incompatíveis com a sua própria concepção de filosofia.
Por outro lado, como a Teologia se associa intimamente à vida religiosa, nenhum teólogo poderia riscar, pura e simplesmente, tudo quanto, nesta matéria, se fez e se ensinou antes dele. Teve S. Tomás, portanto, de reinterpretar as posições de seus predecessores à luz dos seus próprios princípios filosóficos. Daí a curiosa — mas inevitável — perspectiva que o faz aparecer como alguém que constantemente se equivoca sobre a doutrina dos seus predecessores. Que isto seja ilusão, percebe-se facilmente pelo fato que o resultado do que se chama a “sua interpretação” é sempre o mesmo: fazer os predecessores ensinarem uma doutrina que muito se assemelha com aquela que ele próprio está ensinando. S. Tomás de Aquino tem linguagem própria, mas está sempre disposto a aceitar a linguagem de qualquer outro, contanto que seja possível fazê-la dizer aquilo que ele próprio tem como verdadeiro. Tal constância na orientação do método interpretativo não pode resultar de uma série de erros acidentais de interpretação. O que S. Tomás de Aquino faz dizer a Boécio, ou o que ele atribui ao autor do Liber de Causis, às vezes contra a evidência histórica positiva, expressa simplesmente o desejo de deixar intacta a linguagem teológica já recebida e de preservar o espírito da verdade, contido nas doutrinas antigas. É para isto que S. Tomás constantemente põe vinho novo nos velhos barrís, depois de remendá-los.
O sincretismo teológico, sobre o qual (ou dentro do qual), S. Tomás teve de exercer o trabalho crítico, compunha-se de muitos elementos diferentes. A lógica que utilizou era inteiramente aristotélica. Como o fez para a metafísica, recorreu à interpretação de Avicena, sem os erros evidentes do ponto de vista da fé cristã. Serviu-se também do Liber de Causis, do Fons Vitae, de Gabirol, e de muitas outras fontes secundárias, em que dominava a tradição platônica: tal foi em particular o caso de Boécio. Mas o núcleo desse ecletismo era constituído pelo que ainda sobrevivia da teologia de Santo Agostinho.
Havia boa razão para isso. S. Agostinho era, desde muito, a maior autoridade teológica no mundo cristão latino. O De Trinitate, entre muitos outros escritos, era objeto constante de meditação para todos os teólogos, e os inúmeros fragmentos de S. Agostinho, inseridos por Pedro Lombardo nas “Sentenças”, eram suficientes para assegurar a sobrevivência de sua influência nas escolas do século XIII. A filosofia usada por S. Agostinho, na elaboração da Teologia, fora a de Plotino, ou melhor, uma versão revista da filosofia de Plotino. O pensamento filosófico pessoal de S. Agostinho está para o de Plotino como o pensamento filosófico pessoal de S. Tomás de Aquino está para o de Aristóteles.
O problema de S. Tomás de Aquino era, então, manter aquilo que tinha por verdadeiro, sem destruir posições teológicas fundamentalmente boas, ou pelo menos, comumente ensinadas como verdadeiras durante tantos séculos. Em 1956, passaram-se 682 anos da morte de S. Tomás. Mas quando ele morreu, em 1274, 834 anos já haviam passado desde a morte de S. Agostinho. Não nos é fácil avaliar as dificuldades da tarefa de rever discretamente uma a uma, posições doutrinais que, aos poucos, se tornavam indistinguíveis da verdade revelada, de que davam uma certa explicação.
Uma coisa, ao menos, é certa. Como quer que interpretemos o trabalho de S. Tomás de Aquino, para ele esse trabalho permanecerá sempre o de um professor da verdade cristã. Nascido em 1255, tinha S. Tomás seis anos de idade quando, em 1231, seus pais o colocaram como Oblato no Mosteiro beneditino de Monte Cassino. Daí por diante, Tomás nunca deixou de pertencer a uma ordem religiosa, primeiro como beneditino, depois como dominicano. De certo modo ele nunca deixou de sentir e de comportar-se como beneditino. Sua atitude em face do estudo está dominada por esse fato.
Desde os primórdios do cristianismo debateu-se a questão de saber até que ponto os cristãos, particularmente os padres e muito especialmente os monges, teriam permissão para estudar , ou seriam a isso encorajados. S. Tomás de Aquino nunca teve hesitações a este respeito. Na Summa Theologiae propôs resolutamente a questão, pela fórmula mais desafiadora: de fato, não indagou se os monges poderiam ter permissão para estudar, e sim se poderia instituir-se uma ordem religiosa com o fim de dedicar-se aos estudos (S. Teol., IIa IIae, q. 188, a. 5). E sua resposta é afirmativa. Mas o que é interessante considerar são os argumentos com que fundamenta esta afirmativa.
Alguns deles fundamentaram-se nas necessidades da vida ativa: o pregador tem de aprende alguma coisa, se realmente quer pregar. Outros se apoiam nas necessidades da vida contemplativa. Para limitar-se a este segundo grupo de argumentos, observamos inicialmente que os estudos que S. Tomás tinha em mente são os que ele chama de “studia litterarum”. Parece entender por esta expressão, ante de mais nada, o estudo das letras sagradas, ou seja, o estudo da Sagrada Escritura. Tratando da vida contemplativa, S. Tomás de Aquino fixou-lhe, como objeto principal, perscrutar a verdade divina, porque essa contemplação é o fim de toda vida humana. Em segundo lugar, e como para encaminhar a este elevadíssimo objeto, S. Tomás atribui à vida contemplativa a consideração dos efeitos de Deus, consideração que nos leva, como pelas mãos, ao conhecimento do autor desses efeitos. É óbvio que a inclusão do estudo das criaturas entre os fins legítimos da vida contemplativa, implica o reconhecimento dos estudos científicos e filosóficos como objeto legítimos dos estudos monásticos.
S. Tomás de Aquino nunca se afastou desta posição. Sustentou sempre que eram lícitos aos monges os estudos científicos e filosóficos. Sustentou sempre explicitamente que, uma Ordem Religiosa instituída para dedicar-se ao estudo, podia legitimamente incluir ciência e Filosofia nos seus programas, atendendo apenas a que estes estudos se orientassem para a contemplação de Deus, como seu próprio fim. Foi perfeitamente claro neste ponto: “A própria contemplação dos efeitos divinos pertence, secundariamente, à vida contemplativa, pois que o homem por ela se eleva ao conhecimento de Deus” (S. Teol., IIa IIae, 9. 180, a 4, resp.).
Isto nos basta para entender a natureza dos trabalhos de S. Tomás de Aquino. Nada de misterioso a seu respeito. Freqüêntemente eles recorrem à consideração, ou como diz S. Tomás, à contemplação do mundo das coisas naturais; contudo, neles, ciência, lógica e filosofia nunca servem a outro fim que não seja a mais perfeita contemplação de Deus. A resposta mais simples para a debatida questão de saber se há uma filosofia nos trabalhos de S. Tomás de Aquino, é sim, há; ela, porém, se destina sempre a facilitar nosso conhecimento de Deus.
O fato está fora de discussão. A pergunta seguinte seria: pode um filósofo considerar como filosófico esse estudo da natureza e essa especulação filosófica concebida como um passo para o conhecimento de Deus? A resposta naturalmente é: depende. Depende do filósofo e da idéia que tem da Filosofia. Não creio que esta noção da Filosofia seduzisse John Dewey, ou Carnap, ou, para estender um pouco o sentido da palavra “filósofo”, Bertrand Russel. Mas muitos filósofos, que nada têm de comum com S. Tomás de Aquino, ressentir-se-iam bastante com tal limitação da Filosofia. Os filósofos gregos — para considerar os únicos que S. Tomás de Aquino conheceu — eram de opinião, precisamente, que a suprema ambição de todo verdadeiro filósofo era conhecer a Deus.
Detenho-me um momento, pois este é um ponto que parece escapar à atenção de muitos críticos de S. Tomás de Aquino, alguns deles católicos, que parecem surpreendidos por ver um cristão, teólogo e monge, manifestar interesse tão apaixonado pelos escritos de um pagão como Aristóteles. Mas, exatamente como monge cristão, S. Tomás de Aquino estava impressionado com o fato de, séculos atrás, ter já o pagão Aristóteles buscado o mesmo objetivo que ele próprio indicara como seu. Não hesitaríamos nisto se tivéssemos um pouco mais de imaginação. É bem possível que, para convencer alguns de nossos contemporâneos que S. Tomás de Aquino era verdadeiro filósofo, seria mais fácil apresentá-lo como interessado apenas em filosofia; mas, do seu ponto de vista, o maior de todos os filósofos estivera interessado, principalmente, com o problema de Deus.
Releiamos as surpreendentes declarações de S. Tomás de Aquino sobre este assunto, para ele, o verdadeiro nome da Sabedoria era Jesus Cristo; portanto Cristo é a verdade; ora, que disse o Cristo a esse respeito? Eis a resposta de S. Tomás de Aquino: “Por suas próprias palavras a Sabedoria divina dá testemunho de que asumiu a carne e veio para o mundo para dar testemunho da verdade.” (Jo 18,37). O Filósofo afirma que a Filosofia primeira é a ciência da verdade, não de qualquer verdade, mas daquela que é a origem de toda a verdade, ou seja, aquela que pertence ao primeiro princípio pelo qual todas as coisas existem. A verdade pertinente a tal princípio é a fonte de toda verdade; porque as coisas têm na verdade a mesma ordem que têm no ser.” (C. Gent., I, 1-3).
Longe de imaginar que se deva encontrar alguma oposição entre a finalidade da indagação filosófica e a da indagação teológica, S. Tomás pensa que o objeto último delas é o mesmo. Em C. Gent. I, 4, apresenta o conhecimento de Deus como o “mais alto cimo ao qual a investigação humana pode chegar.” Por outras palavras, há completo acordo entre o ensino do doutor da verdade cristã e o do filósofo, na medida em que, no plano do conhecimento natural, também o filósofo é um teólogo.
Qual, então, a diferença entre eles? S. Tomás formulou a pergunta na mesma Questão da Summa em que sustenta que se pode estabelecer uma Ordem Religiosa para dedicar-se ao estudo. Examinou, aí, a seguinte objeção: “o que professa um monge cristão deve ser diferente do que professam os pagãos. Ora, entre os pagãos há alguns professores de Filosofia. Mesmo hoje alguns seculares se chamam professores de certas ciências. Conseqüentemente, os monges nada têm que ver com o estudo das letras.” Responde S. Tomás de Aquino: ainda quando estudam a mesma matéria, os filósofos e os monges não a estudam com o mesmo fim: “os filósofos costumam ensinar as letras como parte da educação secular. Mas compete principalmente ao monge dedicar-se ao estudo das letras relativas à doutrina que “diz respeito à piedade” (Ep. a Tito I, 1). Quanto aos outros ramos das ciências, seu estudo não convém ao religioso, cuja vida toda deve estar a serviço de Deus, a não ser na medida em que se ordenam à doutrina sagrada.” (S. Teol., IIa IIae, q. 188, a. 5, ad 3).
O próprio S. Tomás de Aquino nos assegura, assim, que todos os seus estudos, todos os seus trabalhos, inclusive os comentários das obras de Aristóteles, diferem dos trabalhos dos “filósofos”, porque, no seu caso, a verdadeira finalidade é o estudo da Sagrada Escritura. Foi fiel à sua vocação religiosa: aut de Deo aut cum Deo — Quando não falava de Deus, falava com Deus.
Com isso chegamos ao limiar do nosso último problema, e, segundo creio, ao início da solução. Quando filosofa, nos trabalhos de Teologia, que faz S. Tomás? é teólogo, ou filósofo? De início devemos dizer que é impossível dar uma resposta aceitável por todos. Tudo depende da definição de Teologia tomada como ponto de partida. Embora haja muitas definições de Teologia (praticamente tantas definições quantos teólogos), um elemento, pelo menos, é comum a todas; a saber: a Teologia considera todos os seus objetos à luz da revelação divina.
As diferenças de interpretação começam quando os teólogos procuram definir as relações existentes, dentro da própria Teologia, entre revelação e razão.
Temos hoje uma noção pobre da Teologia, muito diferente da gloriosa imagem familiar aos leitores de Dante, tão esquecida em nossas escolas. É verdade que o teólogo, como entende S. Tomás de Aquino, vê todas as coisas à luz da revelação divina, mas é grave erro imaginar que, no verdadeiro tomismo, ver uma verdade à luz da revelação divina consista necessariamente em partir de uma verdade revelada, como de uma premissa, para dela inferir alguma conclusão.
Fazer isso é, realmente, teologizar. S. Tomás de Aquino concederia mesmo que a verdade teológica, própria e essencialmente, consiste na verdade que Deus nos revelou e que não poderíamos conhecer por outro modo. Esta é o “revelado”: o revelatum, isto é, aquilo que por essência tem que ser revelado para ser conhecido, pura e simplesmente. Mas em torno deste cerne do conhecimento essencialmente teológico há vasta área de especulação racional que, por cooperar com o trabalho da revelação, está também incluído no trabalho do teólogo.
Além da verdade que não se pode conhecer sem a revelação divina, muitas verdades há que não estão fora do alcance da razão humana, mas foram, não obstante, reveladas por Deus ao homem. Por que? Porque é necessário à salvação do homem que estas verdades sejam conhecidas, e, desde que, por várias razões, nem todos os homens são capazes de descobri-las através da indagação filosófica, Deus revelou-as a todos. Ainda que reveladas a todos, estas verdades são cognoscíveis racionalmente. Toda investigação racional dedicada à investigação daquilo que, muito embora revelado por Deus, é conhecível racionalmente, constitui parte da Teologia, tal como a entende S. Tomás de Aquino.
Um fato basta para prová-lo. A Summa Contra Gentiles é um tratado puramente teológico. Foi às vezes chamada a “Suma filosófica” porque contém de fato grande proporção de especulação puramente racional. Mas o prólogo mostra, de modo claro, que a intenção do autor, ao escrevê-la, foi puramente religiosa. Reconhecemos aí o Dominicano que estamos habituados a ouvir na Summa Theologiae, quando, no capítulo II da Contra Gentiles, S. Tomás faz suas as palavras de S. Hilário: “Estou consciente de que devo a Deus a principal obrigação de minha vida, que minha palavra e minha inteligência possam falar dele.” Além disso, São Tomás diz (C.G. II, 4, 6) que, na Contra Gentiles, ele segue a ordem teológica que procede de Deus para a criatura, e não a ordem filosófica que procede da criatura para Deus. Qual é, na Contra Gentiles, a proporção da especulação destinada às verdades reveladas que são inacessíveis à razão sem o auxílio da Fé? Uma quarta parte do todo. O próprio S. Tomás de Aquino o diz. No Prólogo do Lv. IV. 1, 10, S. Tomás assinala a mudança de atitude, de método e de ordem: “no que precede, as coisas divinas foram objetos de exposição na medida em que a razão natural pode obter conhecimento delas pelas criaturas: imperfeitamente, é claro, e conforme à capacidade de nossa inteligência… Agora resta falar daquilo que foi divinamente revelado para nós como algo que se deve acreditar, pois que excede à razão.” Portanto, na Summa Contra Gentiles, três partes da obra estudam as verdades acessíveis à razão humana; e ainda assim todas as coisas nela são Teologia. Evidentemente, S. Tomás adotou este plano porque desejava mostrar aos pagãos e infiéis, que não acreditavam nas Escrituras, quão longe a razão humana pode ir sozinha a caminho da revelação cristã, mas, proceder assim, é precisamente o que São Tomás de Aquino chama ensinar Teologia. Tudo o que está na Contra Gentiles, inclusive a ordem de exposição, é Teologia. Tudo o que está na Summa Theologiae ( e o próprio nome bastaria para o tornar claro), é Teologia. Numa palavra, tudo o que ensinamos nas Escolas como Filosofia de São Tomás de Aquino, foi primeiro ensinado por ele nos tratados teológicos, como parte da verdade teológica.
Seja portanto isto ponto pacífico: como a Teologia inclui tudo o que se pode conhecer à luz da revelação, inclui o que S. Tomás chamou: “a verdade sobre Deus alcançada pela razão natural”, e que, no entanto, Deus “convenientemente propôs ao homem para crer” (C. G. I, 4, título). Isto não é tudo. Além daquilo que o homem não pode conhecer sem a revelação, e além daquilo que o homem conhece, de modo mais fácil e perfeito se lhe é revelado, há o imenso campo de tudo aquilo que, embora não atualmente revelado, pode ser usado pelos teólogos como meios para estabelecer, de modo racional, a verdade revelada, quando isto é possível, ou, ao menos, para defendê-la contra as objeções dos adversários. Na doutrina de São Tomás de Aquino, tudo o que pode servir ao principal objetivo do teólogo, que é fazer conhecer melhor o sentido da verdade revelada, é, pela mesma razão, Deus que a revelou sob a razão formal da revelação, e, portanto, pode incluir-se na Teologia. S. Tomás de Aquino não fixou limites à extensão possível do campo da especulação teológica. Chama revelabilia, “revelável” todo o material não especificado que, segundo o seu talento, gênio, ou aprendizado pessoal, o teólogo pode pôr a serviço da Teologia.
A Filosofia, incluindo todas as ciências que esta palavra evocava na linguagem de Santo Tomás, pode, portanto, integrar-se na Teologia, sem abdicar de seus métodos próprios ou quebrar a unidade da sabedoria teológica. A serviço da Teologia a Filosofia guarda as suas características, mas serve a um fim mais alto.
Esta noção elevada da Teologia assume sentido total à luz de uma observação feita várias vezes por Santo Tomás de Aquino, à qual ele dá grande relevância, ao passo que nós relegamos como não importante para nossos problemas. “Os objetos que são matérias das diferentes ciências filosóficas podem ser ainda tratados por esta única doutrina sagrada, sob um aspecto, a saber, na medida em que são divinamente reveláveis. Deste modo, a doutrina sagrada traz a marca da ciência divina, que é uma e simples, ainda que se estenda a todas as coisas.” (S. Teol. Ia., q. 1, a. 3, ad 2 um).
Estamos no centro da noção tomista de Teologia, concebida como ciência. Todo o saber humano está, nessa concepção, à disposição do teólogo, que dele se serve em vista do seu fim. Não há limites? Sim, realmente, há limites. Nem todo conhecimento humano é igualmente importante para a interpretação da verdade revelada. Ainda assim, esta restrição se deve antes às limitações do homem do que aos objetos das disciplinas filosóficas ou científicas. Na ciência divina, nada conhecível é sem importância para Deus. Na ciência teológica, nada do que nos pode fazer conhecer melhor a Deus é sem importância. Como diz S. Tomás de Aquino na Contra Gentiles, com energia insuperável: muito embora instrua o homem principalmente sobre Deus, a fé cristão faz também do homem, “através da luz da revelação divina, um conhecedor das criaturas” (per lumen divinae revelationis eum criaturaram cognitorem facit), de tal modo que “nasce, então no homem uma espécie de semelhança com a sabedoria divina” (C. G. II, 2, 5). E, realmente, se a Teologia pudesse conhecer as coisas como Deus as conhece, conheceria todas as coisas sob uma só luz, a luz divina. Não é esse conhecimento acessível ao homem nesta vida, mas, a Teologia, pelo menos, nos dá uma pálida idéia da espécie de conhecimento que é aquela sabedoria, que tudo abrange.
Podemos agora dizer onde se pode normalmente encontrar a maior parte do material que integra a estrutura da Filosofia de São Tomás: quase toda nos trabalhos teológicos escritos por Santo Tomás de Aquino. Poder-se-ia extrair a mesma doutrina do texto dos comentários de São Tomás sobre Aristóteles? Pelo que sabemos, a maior parte certamente não. Então, é ela Filosofia? Teologia? Em resumo, que é?
Do ponto de vista de S. Tomás, era Teologia. Para ele a integração da Filosofia na Teologia de nenhum modo diminui o valor racional da filosofia. Como quer que a chamemos, uma demonstração racional é uma demonstração racional. Havendo reduzido a Teologia ao conhecimento de Deus, que prova suas conclusões pela autoridade das sagradas Escrituras, não pela luz natural da razão, alguns de nossos contemporâneos não podem entender como uma conclusão possa ser ambas as coisas, puramente racional e, ao mesmo tempo, teológica. O problema, em grande parte, é verbal, neste sentido ao menos que a resposta permanece dependente de certa definição de Teologia. Quanto a nós, o que queremos dizer nestas observações, é que a coisa é de todo possível, se levarmos em conta a noção de Teologia elaborada por São Tomás de Aquino.
Adianto logo, porém, que não consigo ver como nossos contemporâneos possam admitir esta doutrina. Para eles, qualquer contato entre Filosofia e Teologia é suficiente para privar a Filosofia da pureza racional. Neste ponto, Descartes ganhou certamente a batalha, tanto que, hoje, ninguém ousaria apresentar-se como professor de Teologia, ensinando, dentre outras, conclusões demonstráveis, como se fossem tão racionalmente válidas quanto as que ensinam os professores de Filosofia. Estes últimos não acreditariam nele, e nem mesmo se acreditaria em si próprio. Presentemente, a separação da Filosofia da Teologia parece fato universalmente aceito. Será, talvez, uma das razões pelas quais em 1879, o Papa Leão XIII, na Encíclica Aeterni Patris, propôs que se chamasse “filosofia cristã” a maneira de filosofia própria dos mestres da Escolástica, admiravelmente exemplificada por Tomás de Aquino.
Seria vã esperança supor que esta sugestão pudesse encontrar apoio universal. Entre as características herdadas do povo judeu pelo povo cristão, podemos incluir a de “povo de dura cerviz”. Seria, porém, bom dar ao povo “palavras” que disputem a respeito? O que realmente conta é que estejam de acordo sobre as “coisas”. E, nisto, uma coisa ao menos é certa: como quer que prefiramos designar esta doutrina, a mais compreensiva expressão da verdade cristã, tanto filosófica como teológica, continua sempre ao nosso alcance nos trabalhos de São Tomás de Aquino.
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