sexta-feira, 30 de novembro de 2012

A Arte Moderna e a negação do homem

O visitante que percorre as galerias de um grande museu de arte ocidental admira, século após século, o esforço criador dos retratistas empenhados em embelezar a forma do homem e sua face, em que se inscreve a vocação da pessoa para a inteligência e para a beleza.
Giovanni Arnolfini e sua esposa - Jan Van Eyck, 1434 - National Gallery, Londres
Tudo muda, uma vez ultrapassado o limiar do museu de arte contemporânea. A forma e a figura do ser humano se desagregam; pela magia de uma operação diabólica, os traços se decompõem, os olhos, a boca, o nariz, a testa, as orelhas rompem sua aliança milenar e se dispersam ao acaso num espaço aberrante em que não se reconhecem mais os contornos familiares. As cores são afetadas por uma exasperação maníaca, ou por vezes por uma pustulência cadavérica. 
O Homem das Sete-Cores - Anita Malfatti, 1915
Estas ruínas de sentido, estes restos de humanidade se perderam por sua vez e se vêem aparecer telas cheias de formas geométricas, de manchas coloridas, dispersas ao acaso sobre uma superfície onde mais nada de humano persiste, onde nenhuma vontade inteligível se deixa ler. A arte, que foi celebração e comemoração da realidade humana, apaga-se na negação desta realidade, deserto de significação em que nada mais merece ser posto em destaque. Os visitantes do museu de arte contemporânea desfilam gravemente diante dessas telas; ninguém protesta, ninguém se encoleriza. Talvez viessem a este lugar impelidos apenas pelo esnobismo e pela tolice que admira sem compreender. Mas talvez sintam obscuramente que estão aqui confrontados com o atestado irrefutável de sua própria negação.

(Georges Gusdorf - A Agonia da Nossa Civilização)

sábado, 17 de novembro de 2012

O verdadeiro herói no pequeno Frodo Bolseiro

Trecho da carta de J. R. R. Tolkien enviada à Sra. Eileen Elgar em setembro de 1963, onde a leitora comenta sobre o fracasso de Frodo em se render ao Anel nas Fendas da Perdição.

Muitos poucos (de fato até onde vejo pelas cartas que chegam só você e um outro) observaram ou comentaram sobre o “fracasso” de Frodo. É um ponto muito importante. Do ponto de vista do contador de histórias os eventos na Montanha da Perdição procedem simplesmente da lógica do conto até aquele tempo. Eles não foram trabalhados deliberadamente para que não fossem previstos até que eles acontecessem. Mas, primordialmente, ficou finalmente bem claro que Frodo depois de tudo o que tinha acontecido seria incapaz de destruir o Anel voluntariamente.

Refletindo sobre a solução depois que fosse alcançada (como um mero evento) e sinto que é central à toda “teoria” de verdadeira nobreza e heroísmo que é apresentada. Frodo realmente “falhou” como um herói, como concebido por mentes simples: ele não suportou até o fim; ele cedeu, rendeu-se. Não digo “mentes simples” com desprezo: elas freqüentemente vêem com clareza a verdade simples e o ideal absoluto para os quais os esforços devem ser dirigidos, até mesmo se for inacessível. Porém, sua fraqueza é duplicada. Elas não percebem a complexidade de qualquer determinada situação no Tempo, na qual um ideal absoluto é enredado. Elas tendem a esquecer daquele estranho elemento no Mundo que chamamos Piedade ou Clemência, que também são exigências absolutas no juízo moral (uma vez que está presente na natureza Divina). Em seu exercício mais alto pertence a Deus. Para juízes finitos de conhecimento imperfeito ele pode levar ao uso de duas medidas diferentes de “moralidade”. Para nós mesmos temos que apresentar o ideal absoluto sem compromisso, porque não sabemos nossos próprios limites de força natural (+virtude), e se não almejarmos o mais alto certamente não atingiremos o máximo que poderíamos alcançar. Para outros, no caso de sabermos o bastante para fazer um julgamento, temos que aplicar uma balança moderada por “piedade”: quer dizer, já que nós podemos com boa fé fazer isto sem o preconceito inevitável em julgamentos de nós mesmos, temos que calcular os limites da força alheia e temos que pesar isto contra a força de circunstâncias particulares.


Eu não penso que o de Frodo foi um fracasso moral. Na última hora a pressão do Anel alcançou seu máximo - impossível, eu deveria ter dito, para qualquer um resistir, especialmente depois de tão longa possessão, meses de crescente tormento, e já faminto e exausto. Frodo tinha feito o que ele pôde e se esgotou completamente (como um instrumento da Providência) e tinha criado uma situação na qual o objetivo de sua missão poderia ser alcançado. Sua humildade (com a qual ele começou) e seus sofrimentos foram recompensados justamente pelo honra mais alta; e o seu exercício de paciência e piedade para com Gollum ganhou sua Misericórdia: seu fracasso foi reparado. Somos criaturas finitas com limitações absolutas sobre os poderes de nossa estrutura alma-corpo tanto em ação quanto resistência. O fracasso moral só pode ser afirmado, eu acho, quando o esforço de um homem ou resistência não chegam perto de seus limites, e a culpa diminui quando esse limite mais perto se aproxima.



Todavia, penso que pode ser observado em história e experiência que alguns indivíduos parecem ser colocados em posições de “sacrifício”: situações ou tarefas que para a perfeita solução requerem poderes além de seus limites extremos, até mesmo além de todos os possíveis limites para uma criatura encarnada em um mundo físico - no qual um corpo possa ser destruído, ou tão mutilado a ponto de afetar a mente e determinação. O julgamento sobre qualquer caso como este deveria depender então dos motivos e da disposição com os quais ele começou, e deveria pesar suas ações contra a possibilidade máxima de seus poderes, por toda a jornada até aquilo que colocasse em prova o seu limite.



Frodo empreendeu sua missão por amor - para salvar o mundo ele sabia que custaria seu próprio sacrifício, se ele pudesse; e também em completa humildade, reconhecendo que era completamente inadequado à tarefa. Seu compromisso real era só fazer o que pudesse, tentar achar um caminho, e ir tão longe na jornada quanto sua força da mente e do corpo permitissem. Ele o fez. Eu mesmo não vejo que a ruína de sua mente e vontade sob pressão demoníaca depois do tormento fosse mais um fracasso moral que a ruína de seu corpo teria sido - digamos, sendo estrangulado por Gollum, ou esmagado por uma pedra caída. Este parece ter sido o julgamento de Gandalf e Aragorn, e de todos que conheceram a história completa de sua jornada. Certamente nada foi ocultado por Frodo! Mas o que o próprio Frodo pensou sobre os eventos é decididamente outra questão. Ele parece a princípio não ter tido nenhum senso de culpa (pág. 1003-1004); sua sanidade e paz foram restauradas. Entretanto ele pensou que tinha dado sua vida em sacrifício: ele esperava morrer muito em breve. Mas isso não aconteceu, e pôde-se observar a inquietação crescendo nele. Arwen foi a primeira a observar os sinais, e deu sua jóia para confortá-lo, e pensou em um modo de curá-lo.



Lentamente ele enfraquece “fora de cena”, dizendo e fazendo cada vez menos. Acho que está claro para a reflexão de um leitor atento que quando os tempos escuros o atingiam e ele estava consciente de ter sido “ferido por faca, ferrão e dente, sem falar no fardo que carreguei por tanto tempo” (pág. 1048) não era só recordações do pesadelo de horrores passados que o afligiram, mas também remorso ilógico: ele viu a si mesmo e tudo aquilo que fez como um fracasso desanimador. “Entretanto eu posso voltar ao Condado, ele não parecerá o mesmo, porque eu não serei o mesmo.” Isso foi de fato uma tentação vinda do Escuro, uma última centelha de orgulho: desejar ter retornado como um “herói”, não contente em ser um mero instrumento do bem. E estava mesclada à outra tentação, mais negra e ainda (de certo modo) mais merecida, porém que pode ser explicada, ele não tinha de fato jogado fora o Anel por um ato voluntário: ele foi tentado a lamentar sua destruição, e ainda desejá-la. “Foi-se para sempre, e agora tudo está escuro e vazio”, ele disse quando despertou do mal em 1420. “É lamentável, mas há certos ferimentos que não podem ser totalmente curados”, disse Gandalf (pág. 1048) - não na Terra-média. Frodo foi enviado ou permitido seguir para o Mar para curar-se - se isso pudesse ser feito, antes que morresse.



Ele finalmente “partiu”: nenhum mortal pôde, ou pode, agüentar para sempre na terra, ou em seu Tempo. Assim ele foi tanto para um purgatório e para uma recompensa, por algum tempo: um período de reflexão e paz e ganho de uma compreensão mais verdadeira de sua posição em pequenez e em grandeza, desfrutando ainda o seu Tempo entre as belezas naturais da “Arda Imaculada”, a Terra não violada pelo mal.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A torre forte e a ventoinha

Nas pequenas cidades da idade média, encontram-se não raro vestígios de fortalezas e castelos; e, mesmo onde as construções estão reduzidas a algumas pedras, não é difícil achar quase intacta a alta torre do velho castelo. Ora, essas torres que viram desaparecer tantos séculos e que a seus pés contemplam, com olhar impassível, o turbilhão da vida moderna, como dão bem uma idéia do caráter firme! Em baixo delas, tudo muda, tudo se transforma, tudo evolue; vende-se e compra-se; a elas, porém, nada nem ninguém pode alterar-lhes o granito.

Antigas torres, que são o símbolo do caráter inabalável, do homem que cumpre o seu dever virilmente. Outrora, a torre era o melhor refúgio dos habitantes do castelo; hoje, o homem de caráter firme é o melhor sustentáculo da sociedade. "Nunca abandones o lugar em que a vocação te colocou, e cumpre-lhe todos os deveres" - parecem dizer-nos aquelas pedras mudas. "Considera o número de anos exigidos para a minha construção, quantas pedras foram precisas, e quanto trabalho, bôa vontade, quanto suor! Mas tudo isso não foi em vão. Sobreveio a centenas e centenas de anos!"

Acaso, meu jovem, não te deixas desalentar facilmente na  tua bôa vontade? Quantas vezes não te arrojaste pelo bom caminho, cheio de ardor varonil! Quantas vezes não prometeste trabalhar seriamente no desenvolvimento do teu caráter! Mas, ao cabo de algumas horas, de alguns dias quando muito, a chama do entusiasmo minguava, o ardor desaparecia, e tornavas a ser o mesmo, não é verdade? Foram precisos anos, dezenas de anos, talvez, para levantar a torre; e tu, querias tornar-te homem de caráter num só dia! Bem sabes, entretanto, que se o caminho do pecado é agradável e semeado de flores deliciosas no começo, desilusão terrível cedo nele aguarda o pecador; - e que, se é difícil ser virtuoso no início, esse caminho em breve se torna cada vez menos duro, e sempre, no seu têrmo, se acha a paz duma consciência tranquila.

Mas, que é que eu vejo lá, no cimo daquela velha torre?... aquela coisa que nunca fica no lugar, que vira para a direita e para a esquerda?... Uma ventoinha! Não tem direção fixa, nem sabe estável. Vejo-me quase tentado a dizer que ela não tem princípios nem caráter. Porquanto, se os tivesse, por mais que o vento soprasse, ela não lhe obedeceria. - Abandonar seus princípios, agir contra as próprias convicções, por ser mais cômodo, porque isso assegura uma carreira melhor, porque, à volta de si o vento sopra de outro lado, - é próprio de ventoinha. Mas dize-me, amigo, merece o nome de homem aquele que nas suas ações, princípios e convicções se deixa guiar pelas circunstâncias exteriores e pelos conselhos dos companheiros?

E entretanto, quantos desses jovens não há! Conheces dúzias deles, e eu também. São todos os que não sabem andar com os próprios pés, que, espiritualmente são menores ainda, que olham sempre para a direita e para a esquerda, a verem o que faz o vizinho.

Eis aqui um a quem a consciência avisa: "Não leias esse livro: ouviste dizer que ele é cheio de imundície moral. Por que haverias de deixar a veste branca de tua alma, arrastar-se na água pútrida desse pantanal infecto?" - Está bem, não o lerá. - Chega, porém um colega: "Oh! santinho do pau ôco, criança!", escarnece. - "Eu, criança?", e ei-lo que retorna o livro, e o lê até à última linha e enxovalha a alma na lama que ele encerra.

Agora outro, a quem a consciência diz ainda: "Não vás à exibicação de tal peça, de tal filme! Deixa tal companhia perigosa! - "Como fazer? Os outros lá vão; os outros assim se divertem bastante. Serei o único a lhes fazer frente?".

Ora, meu filho, é exatamente esse o modo de pensar e agir dos ventoinhas.

Pois bem, escolhe. Que preferes ser, uma torre forte ou uma ventoinha? Escravo do mêdo do "que hão de dizer", ou escravo de tua própria consciência?

Dom Tihamer Toth.
O Moço de Caráter.