Por Carlos Nougué
Prometi, há uns dias, falar de certos filmes; não recordando
agora, porém, quais fossem, tratarei aqui de Nostalgia
(Nostalghia), do russo Andrei Tarkovski.
Quanto ao Russo, sintetizam-no estas palavras do cineasta
sueco Ingmar Bergman: “Tarkovski tem a chave de uma porta cinematográfica que
nunca consegui abrir.” Que porta? A porta que eleva a arte a Deus, dado que
Bergman é um atormentado ateu, e que Tarkovski era um homem de fé, além de
contar-se entre os maiores artistas de todos os tempos.
Este filho de um grande poeta russo estava exilado da URSS,
por razões, entre outras, religiosas, quando realizou Nostalgia com a equipe de
Bergman. Por encomenda do estado dirigira ele Solaris, uma ficção científica com que a
burocracia soviética pretendia rivalizar com um filme norte-americano ambíguo,
falho e nietzschiano-gnóstico, mas de sucesso internacional – 2001, Uma Odisseia no Espaço,
de Stanley Kubrick.[1]
De fato, Solaris também obteve êxito
internacional, mas por razão inversa à esperada pelos truculentos burocratas: com
música de Bach para os momentos agudos, o filme é uma dramática paráfrase
da Parábola do Filho Pródigo, construída em ritmo litúrgico. E já quando, junto
com o seu ator principal, reside Tarkovski na Itália, morrendo de saudade da
mulher e do filho pequeno, lacerando-se
de nostalgia da pátria, dos seus campos (ele era de classe média
camponesa), da sua relva penteada pelo Sopro de Deus, e preparando-se para
filmar Nostalgia,
descobre que ele e o seu ator têm, ambos, câncer de pulmão. Tristeza rói e
mata. Logo o amigo falece, e ele, aos 40 anos, em 1979, é também desenganado
pelos médicos. Abandonado pela Igreja Ortodoxa Russa (cuja alta hierarquia
estava toda vendida ao regime comunista) e pela “Igreja Católica” (que então se
dava muito bem com os proponentes da perestroika
e da glasnost),
Tarkovski abre-se, desgraçadamente, a experiências e doutrinas
“esotéricas” do Oriente, o que porém ainda não se refletirá em Nostalgia.[2]
Pois Nostalgia é, precisamente, a
história de um poeta russo que se encontra na Itália. (Contarei a história
porque, evidentemente, a fruição dos filmes de Tarkovski não depende de nenhum
elemento surpresa; conquanto saiba perfeitamente, por outro lado, que nenhuma
arte é nem sequer razoavelmente traduzível pela linguagem corrente: só na
relação direta com cada espectador, ou contemplador, ou leitor, ou ouvinte pode
a obra de arte dar-se inteira, em toda a sua complexidade simbólica e
parabólica.) Está o poeta russo, prossigo, gravemente enfermo do coração, e é
ciceroneado por uma jovem loura — muito bela, e burguesa, e fútil — que se
apaixona por ele. Ainda no início da narrativa, dirigem-se os dois a uma igreja
românica de pedra, a de Nossa Senhora do Parto. E a certa altura, com a câmera
fixada na jovem, ouve-se a voz do sacristão, que insiste e insiste em que ela
se ajoelhe. Em verdade, esta voz representa “os gemidos inefáveis de Deus” na
alma do pecador renitente, e de fato a moça não consegue dobrar-se para o ato
de submissão ao Senhor; é cena tensa, a expressar todo o drama da
salvação/condenação. Em seguida se passa para uma fiel coberta de véu negro, a
qual, diante da imagem da Virgem do Parto, e cercada de intenso vermelho
produzido pela chama de muitas velas, lhe roga a fertilidade, enquanto lhe abre
a veste — sai, então, do ventre da Virgem uma revoada de passarinhos, adejando
Vida. Muda-se a cena para o exterior da igreja, onde o poeta russo, olhando,
melancólico, para um chão coberto de bruma, recebe sobre si uma pena que cai
lentamente — fina metáfora da descida da Graça sobre o pecador, cujos fins e
resultados se verão ao longo do filme.
Avança o filme entre recordações doídas mas belas da terra
natal, da mulher, da filha, do seu pastor belga, e o poeta russo acaba por
conhecer, numa terma,[3]
um louco, que uns dizem santo, e que profetiza o fim do mundo, o fim do
planeta. Para evitá-lo, diz o louco ao russo, é preciso que alguém se exponha
ao sacrifício, ao ridículo de atravessar a terma seca com uma vela acesa
na mão; ele próprio, o louco, não o pode fazer, porque não lho permitiriam.
Muitas cenas depois — entre as quais há uma, passada no quarto do hotel onde se
hospeda o poeta, na qual a loura lhe exibe fugazmente um seio (coisa
desnecessária e censurável), mantendo-se ele, entretanto, fiel à esposa amada e
distante —, o louco imola-se, entre chamas, ostentosa e infrutiferamente, pela
salvação da Terra. O poeta, porém, entendendo já a essência e o fim do
sacrifício (que ou será cristão, ou não será verdadeiro sacrifício), acaba por
assumir o ridículo de, como louco de Deus, atravessar a terma seca com a vela
acesa. Fá-lo-á pela salvação dos homens para a vida eterna. Está tocado pelo
Espírito, e o dom natural da coragem muda-se-lhe em disposição para o martírio.
Temos, então, dez minutos de lenta travessia da terma,
travessia cheia de idas e voltas (cada vez que se apaga a vela, torna o poeta
ao ponto de partida). É aqui, nesta cena
máxima do cinema — filmada em plano-sequência (ou seja, sem cortes e com
a câmara em movimento, aqui, lento), ao som do ofegar do atravessador e, ao
final, com progressivo close das mãos com a vela[4]
—, que se revela quão impregnado estava Tarkovski do ritmo litúrgico. Símbolo
solene, conquanto remoto, do sacrifício de Cristo, esta cena o é também, e
sobretudo, do sacrifício de cada cristão e da sua travessia para a morte:
quando finalmente chega ao seu termo, o poeta russo solta um grito abafado, e
cai morto de enfarte.
E eis-nos diante da última cena, em que a câmera fixa o poeta (a sua alma, ou ele inteiro e ressurrecto — como sabê-lo?) semideitado diante de um muro de antiga catedral italiana, tendo por companhia o pastor belga. Permanece tudo estático por algum tempo, quando, de súbito, começa a nevar: amalgamam-se, assim, na vida perdurável, as pedras cristãs da Itália e a neve da sua amada Rússia. Regenerou-se, misteriosamente, toda a criação. E acabou-se o exílio. Está-se já, e para todo o sempre, na Pátria.
Novembro de 2002
[1] O qual porém tem uma sequência
antológica: o baile dos astros ao som de Danúbio
Azul, valsa de Johann Strauss.
[2] Tal só sucederá no
seu último filme, Sacrifício,
em que todavia ainda se vê um fundo
cristão.
[3] Um estabelecimento de águas medicinais
que fora frequentado por Santa Catarina de Sena.
[4] O término deste close é o ápice sublime da cena, e lembra a gravura Mãos em Oração, de Albrecht Dürer.
Olá, onde vc teve acesso à informação de que Tarkovski é influenciado pelo esoterismo oriental? Estou fazendo uma pesquisa de doutorado no misticismo nas obras de Tarkovski, temho muito interesse em conhecer a sua fonte. Meu email é professorasophiauneb@gmail.com
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