terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Tolerância, por Jackson de Figueiredo

Há poucos dias, a uma esquina do planeta, que tanto pode ser Portugal como as mais próximas da Garnier, víamos - um dos homens mais afortunados deste rico país e o modesto escrevinhador destas linhas - passar, rolar pelo asfalto da Avenida, sobre carros de luxo, alguns dos astros mais brilhantes do nosso sistema social, homens da finança e homens da política, famosos condotieri do mercado e experimentados coronéis da administração. Certo, escapou-me alguma blasfêmia de pessimista ou, menos que isto, uma simples frase irreverente, dessas que são o último recurso de uma conversa desentendida, quase a morrer.
O amigo ilustre, porém, como que se reanimou aquele golpe de acaso. Fulgiram-lhe os olhos, já de si luminosos, de luz nova e singularmente penetrante. Sorriu depois, quase sem esconder que ali estava apiedado de mim e, como houvera pouco antes atentado na capa de um livro que eu tinha debaixo do braço, disse-me despedindo-se: - "O que V. precisa é ler e reler este livro, ou melhor, gravar bem o seu título no coração."

O livro não chegava a ser uma dessas obras geniais com que vai o espírito brasileiro refazendo a cultura ocidental, arruinada pelas brutais negações da guerra e do bolchevismo... Era um pequeno tratado sobre a tolerância, espécie de cartilha ou de guia prático aos que vivem mergulhados no terror de parecerem menos aptos aos climas morais contemporâneos...

Eis aí até que ponto têm decaído no Brasil a inteligência e o caráter, este principalmente. Quem mais o tem, tem medo dele como de uma víbora azougada. Não o quer ver respirar... E a prova é que, quanto pode, concorre para a formação de uma atmosfera inimiga de todo caráter, porque inimiga de toda convicção. Como foi possível esse estado de coisas, é o que é difícil explicar, mas fato contra o qual não valem argumento de qualquer espécie é que, se temos baixado moralmente, se o nosso nível social e político é cada vez mais inferior, é sempre em proporção ao grau de tolerância com que vimos encarando as coisas mais repugnantes e mais despudoradamente implantadas no seio da nossa vida de povo em pleno uso da bandeira, generais, cornetas e tambores, tal e qual os povos que se estimam livres e amantes da liberdade. Fizemo-nos tão furiosamente o país da tolerância que quase já somos como uma casa dela... e se a bandeira não é como luz verde à porta da nossa incrível boa fé, é porque não há quem a possa olhar sem recordar o sangue que por ela já foi derramado, em atos de intolerância da nossa ofendida dignidade...

Não faz muito tempo, deu O País uma resposta curta e incisiva a umas tantas carpideiras da nossa imprensa, que só na tolerância vêem a possibilidade de salvar-se esta nação da horrível queda no clássico abismo da tirania. Nada mais fez aquele matutino que apresentar a essa piedosíssima gente a fotografia de um certo general mexicano "pouco antes" de ser fuzilado "pouco depois" de ser vencido como chefe revolucionário.

Dir-se-á que nem por estes e outros rigores não cansa o espírito da Revolução naquela República. Mas além de serem muito sérias e muito graves as causas da permanente agitação na vida política do México, uma coisa, desde logo, se patenteia como vantagem àquele país, da incontestável dureza de ânimo dos seus homens: as revoluções por lá não desmoralizam generais nem políticos; implicam vencedores e vencidos, que não se acovardam nem diante da derrota, nem diante dos juízes da vitória. É claro que, se no Brasil, os fazedores de revolução tivessem a certeza de que a derrota seria a morte ou, pelo menos, o exílio, em menor número as fariam, e jamais dessas que, vinte dias depois de abortadas, nada mais pedem que um baile sem máscaras e um foguetório de lágrimas reconciliadoras. Em política, quando o que se visa é o bem do país, se a reconciliação pode ser possível e conseqüência de circunstâncias imperiosas, o que não se concebe é a dignidade esmolando o perdão, porque dignidade pode existir até no erro, mas jamais usará a linguagem da covardia.

E não reparam também esses propugnadores da tolerância como princípio da nossa vida política que são eles próprios os primeiros que negam a esta toda a nobreza das convicções e toda a beleza das verdades praticadas. Realmente, "a tolerância sempre teve por objeto um mal". "Tolerar o bem, tolerar a virtude, seriam expressões monstruosas." É isto o que diz a sabedoria dos séculos. Por conseguinte, que é que se pede, entre nós, com essa desenfreada apologia da tolerância, senão o carinho para todos os sofismas e todos os crimes, quando vencidos, ou o império deles reconhecido legítimo, como possibilidade?

Se ela é somente a serenidade da justiça, a benignidade do trato, o respeito às pessoas e aos direitos naturais do ser humano, é evidente que não são os fazedores de revolução em nosso país os que dão exemplo dela, e são eles os menos capazes de a definirem e de ajuizarem do grau em que a merecem. Também os céticos, os que não entram em luta alguma, não podem ser ouvidos sobre o assunto. A tolerância neles é, como diz Vermeersch, cegueira, ingurgitamento, paralisia. "Que coute la tolerance à celui que n'interesse aucune grande cause?"

No domínio da vida contemporânea, dada a gravidade dos problemas agitados, é claro que é muito mais útil à sociedade um homem fanático de péssimas idéias do que um indiferente, isto é, melhor o veneno que mata violentamente, mas a cujos primeiros sintomas é possível acudir com o antídoto indicado pelo bom senso e a tradição, do que esse lívido elixir de podridão, que é o ceticismo. Não, não serão esses erros políticos que nos arrastarão à ruína moral, que, de fato, parece apontar-nos o destino... essa ou aquela forte afirmação de personalidade, que não faz do perdão cantiga ou negócio. Pelo contrário, o que o Brasil precisa é de convicções, é de vontades férreas, é de indivíduos capazes de perdoar, sim, mas antes de tudo capazes de justiça e destemor ante a prosápia do malandrismo político.

O que em verdade se pode afirmar é que o nosso presente mal-estar tem origem longínqua, e jamais na ação decisiva, enérgica e continuada, intolerante - que é assim que a batizam - desse ou daquele dos raros homens que entre nós têm encarnado o poder, e é bem possível que, se Pedro II, ao invés de ler Renan e alisar a testa de mestre Benjamim, tivesse sido simplesmente um verdadeiro chefe da monarquia, consciente da obrigação que tinha de a defender a todo transe, é bom possível, repito, que, se a Federação hoje tivéssemos, ela não fosse esta de dois sobre dezoito, nem o seu espírito constitucional um simples fantasma de quartéis e jornais esfomeados...

Se no mundo europeu a formação dos partidos marcou a era do enfraquecimento das nacionalidades, verdade positiva, incontestável, é que, no Brasil, o desaparecimento dos partidos foi a causa mais séria do enfraquecimento geral dos caracteres dados à política, e, por isso, das não pequenas misérias de que já temos sido vítimas, assim como o aplainamento do terreno para misérias ainda maiores. Ora, nunca os partidos foram possíveis sem a intolerância dos princípios e a relativa intransigência dos homens, sem as quais não é possível vida moral, amor da verdade, e de tudo o mais que é sua conseqüência. Foi justamente o desaparecimento dessas condições de vida moral, que, entregando cada um a si mesmo fez a escravidão da maioria, e nem sempre aos mais dignos desse bastardo feudo. Não seja, pois, a tolerância o ideal das novas gerações brasileiras. Se estas se encontram no grau de inferioridade social, em que estão, devem-no, sobretudo, à inércia com que as gerações anteriores se escravizaram a dogmas da imaginação e do orgulho, traindo, ufanas, os do bom sendo e do patriotismo. A intolerância não é estupidez ou fúria cega. Não é mesmo digno de ser intolerante quem não sabe por que deve sê-lo, quem não sabe por que o é. Intolerância é amor da verdade, tanto da Suprema Verdade, como de qualquer verdade. É a face exterior da convicção, que por sua vez é a face interior da verdade, que, se não depende de nós para ser, só o é para nós quando a procuramos, a amamos, e sabemo-la defender.

Avalio como não sorrirá de mim, se me ler, o ilustre amigo que provocou estas considerações bem menos valiosas que as de Matias Aires em época de maiores vaidades e maiores brios. Mas que se há de fazer?

Já agora é certo que bem diversamente iremos ambos a lutar com o tempo, que não só destrói prodígios de intolerância como os de tolerância... "Pontuais na sepultura", como dizia Machado, não poderemos deixar de ser... E só depois de fechada sobre nós aquela porta, poderemos saber talvez quem de nós foi mais feliz e mais sábio.

Porque, é bom notar, não só de amarguras e desgostos vive a intolerância...
Tem seus dias!, como se diz lá para o Norte.

Jackson de Figueiredo

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