quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Dois Pernambucanos em Alcácer Quibir


O povo português e seu herdeiro, o do Brasil, consideram agosto mês de desgosto e sua 1ª segunda-feira dia aziago, porque a 4 de agosto de 1578, numa segunda-feira, se travou nos areais de Marrocos a famosa batalha de Alcácer Quibir ou de Kass-el-Kebir, cujo resultado foi a derrota e morte do rei de Portugal, D. Sebastião, o Desejado, caindo seu reino com todos os domínios ultramarinos, inclusive o Brasil, sob o poder da coroa espanhola.

Desde uma década mais ou menos após o descobrimento do Brasil andavam os marroquinos envolvidos em contendas civis, nascidas de ambições de rivalidades dos seus príncipes. Uma delas levara à África as armas portuguesas. Reinava, então, em Marrocos a dinastia dos Sáditas ou dos Xerifes, como era mais conhecida. Em 1557, subiu ao trono Mulei Abdalá, cujos irmãos, temendo sua crueldade, fugiram para a Argélia. Eram três: o mais novo Mulei Ahmede voltou mais tarde à terra natal e nada lhe aconteceu; o mais velho foi assassinado por sicários mandados ao seu encalço e o do meio, Mulei Abde Almelique, que as crônicas lusas apelidam Mulei Maluco, destinado a espantoso fim, foi quem deu de certo modo causa àquela batalha, provocando a intervenção do monarca português na crise da sucessão do Império Xerifiano.

Foi o caso que Mulei Abdalá, ao morrer em 1574, designou como seu sucessor, contra as praxes seguidas na ordem sucessória da dinastia, um filho que tivera duma escrava negra Mulei Mohamede Almotanaquil, designado pelos cronistas lusos como Mulei Hamet. Isto desgostou muitos xeiques das tribos marroquinas, o que o irmão do xerife morto. Mulei Maluco, quis aproveitar. Tendo servido com brilho nas campanhas dos turcos, deu o Sultão ordem ao rei de Argel para ajudá-lo e prestigiá-lo. Assim, levantando janízaros e ginetários argelinos, o Maluco invadiu sua pátria pela fronteira da Argélia, venceu o tio e entrou triunfante em Fêz. Todavia, refugiado na cidade de Marrocos, Mulei Hamet decidiu continuar a luta.

Em face da mesma, pensou D. Sebastião em intervir na questão marroquina, procurando entender-se a propósito com o poderoso rei de Espanha, Filipe II. Seu grande argumento era o poderio otomano estendido até Marrocos, graças a Mulei Maluco, protegido do sultão de Constantinopla, constituindo isso grave ameaça à cristandade peninsular.

Conseguido esse apoio, levantou o dinheiro que pôde, organizou uma expedição e entreteve entendimentos com marroquinos influentes. Em fins de 1577, o xerife destronado Mulei Hamet acolheu-se à proteção dos espanhóis e correspondeu-se com D. Sebastião, que o aprazou a esperá-lo em África. O exército com que o Rei se meteu nessa temerária aventura compunha-se de 2800 mercenários tudescos, valões e holandeses, 2 mil castelhanos, 600 italianos enviados pelo Papa, um Terço de Aventureiros em que se incluíam jovens fidalgos lusos e o resto de portugueses, ao todo 17 mil combatentes, dos quais 1500 a cavalo, não se contando uns 8 mil indivíduos que faziam ofício de gastadores, carreteiros, pajens, armeiros, cozinheiros, criados, escravos e rascoas ou chinas de tropa. A artilharia numerava 36 peças de vários calibres.

Esse exército desembarcou em Arzila entre 12 e 28 de julho, chegou a Almenara de 30 para 31, e à ponte de Alcácer, além do sobreiral de Larache, sobre o rio Mocazin, a 3 de agosto. E, ao amanhecer da segunda-feira 4, defrontou as tropas do Xerife na planura de Alcácer Quibir.

Contra eles avançou dividido em três corpos de infantaria tendo ao centro o Terço dos Aventureiros, comandado por Álvaro Pires de Távora, ladeado por mangas de arcabuzeiros de Tânger. À direita, os tudescos. À esquerda, espanhóis e italianos. Ao centro, a bagagem e os não combatentes. Nas alas e coice, os terços lusitanos. Nas costaneiras, as cavalarias. O Xerife formara sua gente à maneira turca, em meia-lua, com infantaria ao centro, cavalaria e infantaria montada nas alas. A sua artilharia, 26 peças, esperava o ataque cristão emboscada numa dobra do terreno, camuflada com ramos de árvores.

A batalha travou-se ainda pela manhã e durou mais ou menos 6 horas, iniciada por uma preparação da artilharia marroquina a que só tardiamente e mal respondeu a portuguesa. Depois, foi o choque em que logo se distinguiu o bravo Terço dos Aventureiros, que entrou pelas formações inimigas com violência sem par, detendo-se, porém, à voz inesperada Ter! Ter! até hoje não explicada convenientemente. Cercados, vendem caros as vidas. Pronuncia-se, então, o desbarato do exército. Os alemães são acossados e dizimados, a artilharia tomada e os terços da retaguarda combatem frouxamente. No meio da grande confusão que se estabelece, o Rei luta como um paladino e tomba com honra, enquanto suas tropas fogem, rendem-se ou são chacinadas pelos infiéis. Esse fim deu origem à lenda do Encoberto, do rei misterioso que um dia voltaria ao seu reino. E o Sebastianismo foi a esperança dum salvador e duma salvação um dia entre os dias...

Não escapou nenhum dos três personagens reais que participaram dessa nefasta batalha. Pereceu em combate de armas na mão o soberano português. Morreu, ao finda a pugna, o xerife marroquino, que a ela comparecera numas andas em precário estado de saúde. E Mulei Maluco, ao fugir da derrota, afogou-se, tentando atravessar o Mocazin. Seu corpo foi esfolado pelos mouros e a pele cheia de palha, sendo transformado em pavoroso espantalho.

Até aqui todos que lêem um pouco de História sabem. Agora o que poucos sabem é que nessa pugna infeliz, de tão graves consequências para o destino de Portugal e do Brasil, estiveram presentes e se bateram como leões dois ilustres brasileiros. Eram eles os dois irmãos pernambucanos, naturais de Olinda, Duarte e Jerônimo de Albuquerque Coelho, ambos filhos do grande Duarte Coelho, primeiro donatário da Capitania de Pernambuco e fundador daquela vila.

Jorge de Albuquerque Coelho comandava uma coluna de cavaleria. Em plena batalha, vendo o Rei tombar do cavalo derrubado por uma bala inimiga, embora gravemente ferido, desmonta e lhe entrega o seu salvando-o, assim, de ser logo morto ou aprisionado. No decurso da pugna cai com seu irmão Duarte, também ferido, prisioneiro dos infiéis. Este, que era o primogênito, não resistindo às consequências dos ferimentos e às agruras do cativeiro, faleceu no fim de dois anos, em 1580, justamente quando Jorge era resgatado a peso de ouro, aleijado das pernas e andando de muletas.

Duarte de Albuquerque Coelho era o segundo donatário da Capitania de Pernambuco. Jorge, seu irmão, mais moço, por sua morte foi o terceiro. Era homem de grande bravura e sangue frio. Em maio de 1565, viajando de Olinda para Lisboa na nau "Santo Antônio", depois de porfiado combate com um pirata francês, rendeu-se e foi largado no mar com seu navio num temporal medonho. Conseguiu animar os companheiros, vencer os elementos e, apesar de longos dias de fome e sêde, chegar finalmente a Cascais. Tinha, como se vê, um grande aprendizado de vicissitudes. E, além de herói, era escritor, tendo sido celebrado por um poeta, Bento Teixeira Pinto, na "Prosopopéia".

Deixou Jorge de Albuquerque Coelho, como seu pai, também dois filhos ilustres: Duarte de Albuquerque Coelho, Marquês de Basto, primeiro Conde de Pernambuco e quarto donatário dessa capitania, autor das Memórias Diárias da Guerra do Brasil, e o grande Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete, general das forças brasileiras contra os holandeses na guerra de Pernambuco e general das forças portuguesas contra os espanhóis na guerra da independência ou restauração de Portugal.

São desta sorte as grandes figuras da brava gente pernambucana.

Gustavo Barroso - Segredos e Revelações da História do Brasil

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