Inquestionávelmente, numa
grande cidade, o médico tem muitas ocasiões de conhecer o avesso do casamento.
Antes, quando eu clinicava na província do norte e nas aldeias mineiras do País
de Gales, encarava com respeito infinitamente maior a instituição da família.
Naquelas remotas zonas, onde seus habitantes trabalhavam juntos para extrair da
terra ou das minas o necessário à subsistência, a família era o principal elo
da comunidade, existindo e sobrevivendo graças à sua própria
indispensabilidade. Em Tannochbrae, sobretudo, pais e filhos levantavam-se
igualmente cedo e assumiam cada qual a sua determinada tarefa: uns cuidavam do
gado, outros ordenhavam as vacas, aravam e destorroavam os campos, faziam pão,
cozinhavam, enlatavam conservas, escoavam o chão e enxaguavam a roupa em meio
aos vapores e à árdua faina da faxina semanal. Havia um senso de dever nessa
vida rude e simples e também um forte sentimento religioso, o qual se
manifestava na reunião noturna para as preces familiares. Os divertimentos eram
raros, embora não menos apreciados, e apesar de suas óbvias austeridades, a
família tinha suas compensações e satisfações próprias, vivia intimamente
unida, era quase indissolúvel.
Mas em Londres o quadro
mudara por completo. Ali todas as conveniências, prazeres, distrações, e
excitações oferecidas por aquela vasta concentração metropolitana de uma
suposta civilização, exerciam forte influência corruptiva sobre o lar. Essa
coesão inata que, em comunidades mais atrasadas, conserva intacto o
grupo-família, ia desaparecendo tristemente, em conseqüência do que, em muitos
exemplos por mim presenciados, a família simplesmente se dissolvia.
Com as cortes metropolitanas
de divórcio em franca atividade, inúmeros casos dolorosos de casamentos
desfeitos foram por mim observados. Considerando a miséria, os filhos
desgarrados e desiludidos, os amargos rancores e ressentimentos, a caótica
confusão resultante da maioria dos divórcios, a situação parecia-me tão
calamitosa, que eu costumava perguntar a mim mesmo com freqüência, como era
possível que, diante de Deus, pessoas equilibradas pudessem aceitá-la.
Indubitavelmente, a causa
principal do rompimento de tantos matrimônios é o fato das pessoas passarem ao
estado de casadas de maneira tão leviana, tão impensada, levando uma concepção
tão absolutamente falsa do significado real e do objetivo do casamento. Por
infelicidade, todavia, a noção da atração sexual como base primordial do
matrimônio, embebida de um romantismo doentio e adoçada com a falsa promessa de
uma eterna lua de mel, tornou-se parte integrante do ideal moderno. A atração
física tem seu lugar no casamento – na maioria dos casais felizes que conheci,
essa atração prolongou-se durante vinte, trinta e até quarenta anos. Mas há
outras qualidades infinitamente mais importantes do que uns lábios de rubi, uns
olhos cintilantes ou a muito decantada tez cor de pêssego. A áspera estrada da
vida exige roupagens mais resistentes do que um negligée de pura seda, e os pés que a trilharem devem usar calçados
mais fortes do que um par de sapatinhos de salto alto. O amor à primeira vista
é uma perigosa ilusão; nada mais verdadeiro do que aquele velho rifão que diz: “Casa-te
às pressas que terás muito tempo para te arrependeres.” Se apenas metade dos
jovens que, ao primeiro embalo amoroso, se atiram nos braços uns dos outros,
pudesse ser educada de acordo com essas realidades, quantas dessas tristes
decepções pós-nupciais lhes seriam poupadas.
Esse imortal personagem que
é o Vigário de Wakefield, em sua observação inicial aproxima-se muito dessa
questão: “Escolhi minha mulher, diz ele, como ela escolheu o seu vestido de
noiva: pelas qualidades de duração”.
Não – notem bem – porque ela fosse uma nova Afrodite. Na minha Escócia natal,
tantas vezes alvo de críticas humorísticas, o namoro é considerado algo muito
importante. Os namorados devem sair juntos durante vários anos, aprendendo a
conhecer-se num constante companheirismo, discutindo o futuro com pormenores,
economizando cada qual o seu dinheiro, fazendo preparativos para a vida em
comum, de modo que quando, após esse período de experiência, afinal se casam,
fazem-no sobre uma sólida base de compreensão e de respeito, e não tem que
enfrentar nenhum dos perigos que com tanta freqüência estragam os primeiros
tempos do matrimônio.
Sem dúvida os primeiros
meses de qualquer casamento são os mais difíceis. Passada a excitação da cerimônia
nupcial, arrefecidos os enlevos da lua de mel, em geral os recém-casados recaem
na realidade com um duro e inesperado solavanco. Não estão habituados a viver
juntos, nem tem ainda a maturidade ou a experiência necessária para se
adaptarem a uma rotina que bruscamente os coloca diante das inevitáveis
realidades da vida – problemas econômicos e domésticos, dúvidas e dificuldades
relacionadas com o sexo, os parentes, a religião, e até mesmo incipientes
irritações mútuas diante dos hábitos pessoais de cada um. Supunham que tudo o
que tinham que fazer para conseguir a felicidade eterna era casar-se. Ambos
haviam construído um brilhante castelo de expectativas. E que encontravam agora?
Apenas uma pilha de pratos engordurados na pia da cozinha, um leito por fazer,
a batida da porta do apartamento após o beijo perfunctório do jovem marido que
sai correndo para alcançar o ônibus da cidade. Nesse instante a vida de repente
parece transformar-se em algo azedo, mofado, intoleravelmente enfadonho. É
então que esse insidioso pensamento pode nascer no subconsciente de cada um dos
esposos: teria eu acertado ao dar este passo fatal? Não estaria hoje melhor se
tivesse conservado a minha liberdade?
Num sujo apartamento de dois
cômodos de uma rua suburbana de Bayswater conheci um casal assim. Tinham-se
casado havia um ano, mas já então, desiludidos pela feiúra do ambiente que os
cercava, pelas limitações impostas às suas ambições pessoais, e pelos freqüentes
atritos de seus temperamentos, tinham decidido que era tempo de se separarem.
Ele era arquiteto – jovem inteligente que em vez de continuar seu trabalho numa
grande firma de construtores, onde desenhava plantas de pequenas habitações
suburbanas geminadas, resolvera ir terminar seus estudos em Roma e queria
construir uma imponente, uma monumental catedral. Ela, de posse de um diploma de
colégio e apaixonada pela arte, não ficava atrás em sua feroz determinação de
abandonar os odiosos misteres de cozinheira, lavadeira e passadeira e ir levar
uma vida mais completa e mais livre na Rive
Gauche em Paris. Cada qual por seu lado me confiou suas intenções com uma
acerba intensidade que se tornava ainda mais patética pelo fato de ambos se
amarem realmente. Não se pode avaliar que loucuras teriam cometido. Mas
felizmente a natureza interveio e como médico pude informá-los de que dentro de pouco tempo iriam ter um
filho. Essa contingência de todo inesperada chamou-os a si, fê-los compreender
suas responsabilidades e, como havia nos dois uma grande soma de bondade,
obrigou-os a começar vida nova. São hoje pais de quatro filhos e conquanto ele
não tenha conseguido a sua catedral italiana nem ela obtido um lugar de honra
em Louvre, lograram ambos vencer as dificuldades dos primeiros tempos, prosperaram
financeiramente e construíram uma bela e confortável casa própria.
Não resta dúvida que os
filhos são os melhores esteios do casamento – as estatísticas demonstraram que
a maior porcentagem dos divórcios ocorre entre casais sem filhos. O
aparecimento de uma criança na família produz uma sensação de realização, de
plenitude, nos pais jovens. Une-os mais intimamente pelos laços de uma nova
solidariedade, cria novos interesses, dá-lhes uma oportunidade, um objetivo – o
de formar um indivíduo que honrará a sociedade e a eles próprios. Não se
enganem – as crianças não são criaturas de todo angelicais, “caídas do céu”,
prontas para curar todas as aflições paterna e aplanar os conflitos de toda a
família. Em geral o nascimento de uma criança transtorna a ordem doméstica
tanto de dia como de noite, perturba o equilíbrio entre o marido e a mulher,
cria novos riscos, novos problemas e novos receios. Mas a criança vale cem
vezes mais que tudo isso. Quão sábios são os casais que redimem a má sorte de
uma união estéril por meio do generoso processo da adoção! Os maridos que
evitam as responsabilidades da paternidade, as esposas que se negam a exercer
as funções de mãe, estão prostituindo a condição de casados.
Na minha Universidade,
quando me formei, tínhamos um velho professor escocês de medicina que costumava
dar à sua classe este conselho de despedida: “Agora que estão formados,
rapazes, tratem de casar-se. Tenham filhos. Façam deles criaturas bonitas,
fortes e sadias. E eduquem-nos de maneira a que possam honrá-los.” Era um velho
sábio, conhecer das esparrelas e armadilhas do mundo, e punha em prática o que
pregava – tinha um filho que se tornou, mais tarde, um dos mais famosos médicos
da Europa.
Semelhante atitude mental
exige que o casamento e a família sejam levados a sério. Temos que trabalhar, e
trabalhar muito, para conseguir as alegrias e satisfações que nos vem da vida
de família. Temos que aprender a adaptar-nos, a enfrentar reveses e privações
nada fáceis de suportar, a desenvolver a compreensão e o auto-controle, a
praticar as silenciosas virtudes da paciência e do sacrifício pessoal. Quantas
vezes defrontei-me com exemplos desse heroísmo, com atos de coragem e de
dedicação, praticados sem alarde, como que em surdina, e que no entanto dariam
para encher volumes tal a eloqüência com que falavam sobre a força, a riqueza e
a beleza das malhas com que são tecidos os laços familiares. Conheci uma esposa
que sofreu durantes meses, sem um murmúrio, as dores e os riscos de uma enfermidade,
recusando-se a contar ao marido para não preocupá-lo enquanto ele cuidava de
determinados negócios de importância vital para o seu futuro. Em outra ocasião
fui chamado para atender a uma senhora, viúva e mãe, que passara literalmente
fome até suas forças se exaurirem quase que de todo para economizar um dinheiro
extraordinário com o qual seu filho, inteligentíssimo, pudesse formar-se pelo
Trinity College. E com que nitidez me recordo do moço que veio me chamar para
atender ao parto de sua mulher... primeiro filho. Quando ele abriu nervosamente
a carteira no meu consultório, dois cartões caíram casualmente sobre a minha
mesa. Eu os apanhei. Eram cautelas de penhor. Muito confuso, explicou-me que
naqueles últimos tempos tivera que trabalhar apenas meio dia e por isso
empenhara o relógio para pagar o depósito correspondente aos meus honorários.
Disse-lhe imediatamente que isso não era necessário, que ele poderia pagar-me
quando a situação melhorasse. Depois perguntei-lhe com curiosidade:
- E a outra cautela?
Ele mostrou-se ainda mais
embaraçado e por fim confessou-me com voz entrecortada que no dia seguinte sua
mulher faria anos. Não poderia, de maneira alguma, deixar passar em branco o
seu aniversário. Empenhara então suas condecorações de guerra para comprar-lhe
um presente – um brochezinho de prata.
É sobre semelhantes exemplos
de solicitude e de renúncia que se edifica um lar. Nele não há lugar nem para o
homem nem para a mulher egoísta e personalista. O casamento não é uma jornada
alegre. Mas aqueles que não fogem às suas responsabilidades, que enfrentam as
dificuldades e as vencem, colherão uma preciosa recompensa no aconchego e na
intimidade da vida de família, na alegria de uma casa que não é apenas um lugar
onde se dorme, nos interesses comuns, no consolo e nos prazeres de um lar
unido. Se falo sobre isso com tanto sentimento, devo-o à felicidade que meu
próprio casamento me trouxe, ao golpe de sorte que me deu uma esposa tão bem
formada graças à educação que recebeu; tão paciente; dotada de tanta capacidade
de renúncia e tão inteligente; acima de tudo, tão fiel em todas as vicissitudes
de nossa convivência de trinta anos, que a vida sem ela agora seria
inconcebível.
Muitas vezes me pediram para
citar a virtude mais necessária à segurança de tão perfeita união. Sem dúvida,
a resposta é: a lealdade. A pior ofensa que se pode fazer contra o casamento, o
rochedo contra o qual a felicidade da família em geral se despedaça, é a infidelidade.
São por mais numerosos – ai de nós! – os exemplos em que o nível da moralidade
se rebaixa. A infidelidade é uma ordinarice, uma desprezível traição à
confiança mútua, o mais vil dos pecados que figuram no livro dos malfeitos
humanos.
Mas há outras deslealdades
que, embora menos óbvias do ponto de vista material, são ao seu modo tão
perigosas quanto a outra. Na minha clínica conheci uma família – mãe, pai,
filho adolescente e filha – na qual, apesar das condições de prosperidade e do
excesso de boas coisas que a vida lhes oferecia, reinava uma constante e
latente desarmonia. A esposa era, sem dúvida alguma, uma mulher virtuosa. A
mais leve insinuação de que pudesse ainda que remotamente vir a ser infiel ao
marido teria sido por ela repudiada. Todavia, da manhã à noite seu desejo
inconsciente parecia ser diminuir o esposo aos olhos dos filhos – alçando as
sobrancelhas, trocando olhares irônicos com o filho ou a filha quando ele fazia
uma observação ingênua, aparentando de certo modo criticar-lhe as opiniões, os
trajes e até mesmo o físico.
Essa inerente deslealdade é
do mesmo modo manifestada pelas esposas que falam mal do marido por trás dele,
bem como pelos maridos que lastimam junto a outras mulheres do quanto são
incompreendidos, e que para serem consolados por um amigo, um parente, ou uma
mãe, contam-lhes tristes histórias desta ou daquela injustiça, dizem-se vítimas
de extravagâncias, ou de crueldades, e em suas mútuas acusações correm toda a
lista dos defeitos humanos que cada qual enxerga no outro mas é incapaz de
reconhecer em si próprio.
Não há união que possa
sobreviver a tais condições; uma casa dividida contra si própria jamais poderá
manter-se em pé. Essas pessoas deviam calar-se, sorrir, se possível, cada qual
das falhas do outro, esforçando-se por sufocar no riso esse horrível
ressentimento que, aumentado e deformado, faz de João um monstro e de Maria uma
bisbilhoteira sem coração. Nada contribui mais para o equilíbrio da família do
que um pouco de sendo de humor.
Lembro-me muito bem de uma
noite, nos primeiros meses de meu casamento. Eu voltava para casa, ou melhor,
para os miseráveis cômodos que ocupávamos em Tregenny, naquela atrasada aldeia
galesa onde eu começara a trabalhar e tentava formar uma clínica. Estava
deprimido, preocupado com um caso difícil, morto de cansaço após um dia de
trabalho estafante debaixo de chuva e varado de fome. Seria capaz de comer um
boi inteiro. Mas em vez disso, minha jovem esposa delicadamente apresentou-me
um único ovo quente. Com grande esforço consegui controlar-me e quebrei o ovo.
Estava podre. Diante disso, tudo desabou. Comecei a soltar todos os nomes e
pragas que conhecia. Ao que minha esposa, que de sua parte também tivera um dia
cheio de tribulações, rebateu ao pé da letra. O bate-boca ia de mal a pior até
que de repente, quando a coisa estava no auge, detivemo-nos de chofre, olhamos
um para o outro com os olhos injetados, e realizando o absurdo daquela cena,
disparamos a rir e caímos nos braços um do outro. Restabelecia a harmonia,
tomamos o trem rumo à próxima aldeia que ficava a dez milhas de distância, lá
embaixo no vale, saboreamos uma satisfatória Cia de faggots – que em galês equivale a salsicha – e fomos ao barracão
coberto de zinco onde funcionava o cinema ver Charlie Chaplin em O Garoto. O que poderia ter sido um
trágico rompimento, acabou numa alegre reconciliação, tudo porque duas
criaturas jovens tinham suficiente compreensão para apreciar o lado cômico de
um ovo podre.
Uma afável tolerância
contribui muito para que as rodas da vida familiar girem suavemente e,
principalmente quando somos mais velhos, a prática dessa hábil diplomacia à
qual poderíamos denominar a arte da indulgência mútua, produz verdadeiros
milagres. Se seu marido começar a ficar careca, a ofegar ligeiramente quando
sobe uma escada, não faça comentário sobre esses brutais sintomas da passagem
de anos. E se sua mulher principia a engordar – prenúncio de que a tão temida
meia-idade se aproxima – diga-lhe em tom convincente que a sua gordura a tornou
mais atraente do que quando você se apaixonou por ela. Se seus filhos são
barulhentos e pouco asseados, se se sentam à mesa sem lavar as mãos ou deixam
marcas de pés no assoalho recém-encerado, procure obter deles um comportamento
melhor sem perder a calma nem recorrer ao expediente de “botá-los para fora com
berros”. Um pouco de generosidade, um ligeiro estímulo, às vezes dão mais
resultado do que cem chineladas.
A ternura a bondade são poderosos
fatores na promoção da união e da estabilidade da família. Mais forte do que
tudo, entretanto, é a necessidade de alguma manifestação do espírito religioso.
Sem dúvida já vão longe os tempos em que a Bíblia era lida em voz alta em todos
os lares. É possível também que a imagem de uma criança murmurando suas preces
no colo de sua mãe seja encarada hoje por muitos com a irrisão com que se
contempla um cromo sentimental do tempo antigo. Mas no lar em que os valores
espirituais não forem até certo ponto respeitados, a família estará
inevitavelmente fadada à dissolução. Nem só de pão vive o homem. A família que
não buscar no Alto a sua inspiração nunca irá por diante. “A Família que se une
para orar, permanecerá sempre unida”.
Desde o início dos tempos, o
desejo fundamental do homem tem sido possuir uma companheira, ter filhos, poder
dar-lhes abrigo, calor e alimento, protegê-los contra os perigos com que o
mundo os ameaça. O advento do cristianismo
serviu para santificar e enobrecer esse impulso primitivo. E daí por
diante, através dos séculos, a família tem-se conservado em lugar de relevo,
não só na defesa da moralidade, como na evolução da cultura humana. Onde
quer que ela prospere e demonstre vigor
e unidade, aí se encontrará uma sociedade sadia e sólida. Numa era de medo e de
inquietude, em que o homem, cercado por forças hostis, sente-se perdido na mais
negra solidão, é a família a sua maior, a sua derradeira esperança... da qual
dependerá a sua autopreservação, a manutenção da dignidade humana e da decência
da vida.
Pelos Caminhos da Minha Vida - A. J. Cronin
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