sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A Família e o Matrimônio - Cronin

Inquestionávelmente, numa grande cidade, o médico tem muitas ocasiões de conhecer o avesso do casamento. Antes, quando eu clinicava na província do norte e nas aldeias mineiras do País de Gales, encarava com respeito infinitamente maior a instituição da família. Naquelas remotas zonas, onde seus habitantes trabalhavam juntos para extrair da terra ou das minas o necessário à subsistência, a família era o principal elo da comunidade, existindo e sobrevivendo graças à sua própria indispensabilidade. Em Tannochbrae, sobretudo, pais e filhos levantavam-se igualmente cedo e assumiam cada qual a sua determinada tarefa: uns cuidavam do gado, outros ordenhavam as vacas, aravam e destorroavam os campos, faziam pão, cozinhavam, enlatavam conservas, escoavam o chão e enxaguavam a roupa em meio aos vapores e à árdua faina da faxina semanal. Havia um senso de dever nessa vida rude e simples e também um forte sentimento religioso, o qual se manifestava na reunião noturna para as preces familiares. Os divertimentos eram raros, embora não menos apreciados, e apesar de suas óbvias austeridades, a família tinha suas compensações e satisfações próprias, vivia intimamente unida, era quase indissolúvel.

Mas em Londres o quadro mudara por completo. Ali todas as conveniências, prazeres, distrações, e excitações oferecidas por aquela vasta concentração metropolitana de uma suposta civilização, exerciam forte influência corruptiva sobre o lar. Essa coesão inata que, em comunidades mais atrasadas, conserva intacto o grupo-família, ia desaparecendo tristemente, em conseqüência do que, em muitos exemplos por mim presenciados, a família simplesmente se dissolvia.

Com as cortes metropolitanas de divórcio em franca atividade, inúmeros casos dolorosos de casamentos desfeitos foram por mim observados. Considerando a miséria, os filhos desgarrados e desiludidos, os amargos rancores e ressentimentos, a caótica confusão resultante da maioria dos divórcios, a situação parecia-me tão calamitosa, que eu costumava perguntar a mim mesmo com freqüência, como era possível que, diante de Deus, pessoas equilibradas pudessem aceitá-la.

Indubitavelmente, a causa principal do rompimento de tantos matrimônios é o fato das pessoas passarem ao estado de casadas de maneira tão leviana, tão impensada, levando uma concepção tão absolutamente falsa do significado real e do objetivo do casamento. Por infelicidade, todavia, a noção da atração sexual como base primordial do matrimônio, embebida de um romantismo doentio e adoçada com a falsa promessa de uma eterna lua de mel, tornou-se parte integrante do ideal moderno. A atração física tem seu lugar no casamento – na maioria dos casais felizes que conheci, essa atração prolongou-se durante vinte, trinta e até quarenta anos. Mas há outras qualidades infinitamente mais importantes do que uns lábios de rubi, uns olhos cintilantes ou a muito decantada tez cor de pêssego. A áspera estrada da vida exige roupagens mais resistentes do que um negligée de pura seda, e os pés que a trilharem devem usar calçados mais fortes do que um par de sapatinhos de salto alto. O amor à primeira vista é uma perigosa ilusão; nada mais verdadeiro do que aquele velho rifão que diz: “Casa-te às pressas que terás muito tempo para te arrependeres.” Se apenas metade dos jovens que, ao primeiro embalo amoroso, se atiram nos braços uns dos outros, pudesse ser educada de acordo com essas realidades, quantas dessas tristes decepções pós-nupciais lhes seriam poupadas.

Esse imortal personagem que é o Vigário de Wakefield, em sua observação inicial aproxima-se muito dessa questão: “Escolhi minha mulher, diz ele, como ela escolheu o seu vestido de noiva: pelas qualidades de duração”. Não – notem bem – porque ela fosse uma nova Afrodite. Na minha Escócia natal, tantas vezes alvo de críticas humorísticas, o namoro é considerado algo muito importante. Os namorados devem sair juntos durante vários anos, aprendendo a conhecer-se num constante companheirismo, discutindo o futuro com pormenores, economizando cada qual o seu dinheiro, fazendo preparativos para a vida em comum, de modo que quando, após esse período de experiência, afinal se casam, fazem-no sobre uma sólida base de compreensão e de respeito, e não tem que enfrentar nenhum dos perigos que com tanta freqüência estragam os primeiros tempos do matrimônio.

Sem dúvida os primeiros meses de qualquer casamento são os mais difíceis. Passada a excitação da cerimônia nupcial, arrefecidos os enlevos da lua de mel, em geral os recém-casados recaem na realidade com um duro e inesperado solavanco. Não estão habituados a viver juntos, nem tem ainda a maturidade ou a experiência necessária para se adaptarem a uma rotina que bruscamente os coloca diante das inevitáveis realidades da vida – problemas econômicos e domésticos, dúvidas e dificuldades relacionadas com o sexo, os parentes, a religião, e até mesmo incipientes irritações mútuas diante dos hábitos pessoais de cada um. Supunham que tudo o que tinham que fazer para conseguir a felicidade eterna era casar-se. Ambos haviam construído um brilhante castelo de expectativas. E que encontravam agora? Apenas uma pilha de pratos engordurados na pia da cozinha, um leito por fazer, a batida da porta do apartamento após o beijo perfunctório do jovem marido que sai correndo para alcançar o ônibus da cidade. Nesse instante a vida de repente parece transformar-se em algo azedo, mofado, intoleravelmente enfadonho. É então que esse insidioso pensamento pode nascer no subconsciente de cada um dos esposos: teria eu acertado ao dar este passo fatal? Não estaria hoje melhor se tivesse conservado a minha liberdade?

Num sujo apartamento de dois cômodos de uma rua suburbana de Bayswater conheci um casal assim. Tinham-se casado havia um ano, mas já então, desiludidos pela feiúra do ambiente que os cercava, pelas limitações impostas às suas ambições pessoais, e pelos freqüentes atritos de seus temperamentos, tinham decidido que era tempo de se separarem. Ele era arquiteto – jovem inteligente que em vez de continuar seu trabalho numa grande firma de construtores, onde desenhava plantas de pequenas habitações suburbanas geminadas, resolvera ir terminar seus estudos em Roma e queria construir uma imponente, uma monumental catedral. Ela, de posse de um diploma de colégio e apaixonada pela arte, não ficava atrás em sua feroz determinação de abandonar os odiosos misteres de cozinheira, lavadeira e passadeira e ir levar uma vida mais completa e mais livre na Rive Gauche em Paris. Cada qual por seu lado me confiou suas intenções com uma acerba intensidade que se tornava ainda mais patética pelo fato de ambos se amarem realmente. Não se pode avaliar que loucuras teriam cometido. Mas felizmente a natureza interveio e como médico pude informá-los  de que dentro de pouco tempo iriam ter um filho. Essa contingência de todo inesperada chamou-os a si, fê-los compreender suas responsabilidades e, como havia nos dois uma grande soma de bondade, obrigou-os a começar vida nova. São hoje pais de quatro filhos e conquanto ele não tenha conseguido a sua catedral italiana nem ela obtido um lugar de honra em Louvre, lograram ambos vencer as dificuldades dos primeiros tempos, prosperaram financeiramente e construíram uma bela e confortável casa própria.

Não resta dúvida que os filhos são os melhores esteios do casamento – as estatísticas demonstraram que a maior porcentagem dos divórcios ocorre entre casais sem filhos. O aparecimento de uma criança na família produz uma sensação de realização, de plenitude, nos pais jovens. Une-os mais intimamente pelos laços de uma nova solidariedade, cria novos interesses, dá-lhes uma oportunidade, um objetivo – o de formar um indivíduo que honrará a sociedade e a eles próprios. Não se enganem – as crianças não são criaturas de todo angelicais, “caídas do céu”, prontas para curar todas as aflições paterna e aplanar os conflitos de toda a família. Em geral o nascimento de uma criança transtorna a ordem doméstica tanto de dia como de noite, perturba o equilíbrio entre o marido e a mulher, cria novos riscos, novos problemas e novos receios. Mas a criança vale cem vezes mais que tudo isso. Quão sábios são os casais que redimem a má sorte de uma união estéril por meio do generoso processo da adoção! Os maridos que evitam as responsabilidades da paternidade, as esposas que se negam a exercer as funções de mãe, estão prostituindo a condição de casados.

Na minha Universidade, quando me formei, tínhamos um velho professor escocês de medicina que costumava dar à sua classe este conselho de despedida: “Agora que estão formados, rapazes, tratem de casar-se. Tenham filhos. Façam deles criaturas bonitas, fortes e sadias. E eduquem-nos de maneira a que possam honrá-los.” Era um velho sábio, conhecer das esparrelas e armadilhas do mundo, e punha em prática o que pregava – tinha um filho que se tornou, mais tarde, um dos mais famosos médicos da Europa.

Semelhante atitude mental exige que o casamento e a família sejam levados a sério. Temos que trabalhar, e trabalhar muito, para conseguir as alegrias e satisfações que nos vem da vida de família. Temos que aprender a adaptar-nos, a enfrentar reveses e privações nada fáceis de suportar, a desenvolver a compreensão e o auto-controle, a praticar as silenciosas virtudes da paciência e do sacrifício pessoal. Quantas vezes defrontei-me com exemplos desse heroísmo, com atos de coragem e de dedicação, praticados sem alarde, como que em surdina, e que no entanto dariam para encher volumes tal a eloqüência com que falavam sobre a força, a riqueza e a beleza das malhas com que são tecidos os laços familiares. Conheci uma esposa que sofreu durantes meses, sem um murmúrio, as dores e os riscos de uma enfermidade, recusando-se a contar ao marido para não preocupá-lo enquanto ele cuidava de determinados negócios de importância vital para o seu futuro. Em outra ocasião fui chamado para atender a uma senhora, viúva e mãe, que passara literalmente fome até suas forças se exaurirem quase que de todo para economizar um dinheiro extraordinário com o qual seu filho, inteligentíssimo, pudesse formar-se pelo Trinity College. E com que nitidez me recordo do moço que veio me chamar para atender ao parto de sua mulher... primeiro filho. Quando ele abriu nervosamente a carteira no meu consultório, dois cartões caíram casualmente sobre a minha mesa. Eu os apanhei. Eram cautelas de penhor. Muito confuso, explicou-me que naqueles últimos tempos tivera que trabalhar apenas meio dia e por isso empenhara o relógio para pagar o depósito correspondente aos meus honorários. Disse-lhe imediatamente que isso não era necessário, que ele poderia pagar-me quando a situação melhorasse. Depois perguntei-lhe com curiosidade:

- E a outra cautela?

Ele mostrou-se ainda mais embaraçado e por fim confessou-me com voz entrecortada que no dia seguinte sua mulher faria anos. Não poderia, de maneira alguma, deixar passar em branco o seu aniversário. Empenhara então suas condecorações de guerra para comprar-lhe um presente – um brochezinho de prata.

É sobre semelhantes exemplos de solicitude e de renúncia que se edifica um lar. Nele não há lugar nem para o homem nem para a mulher egoísta e personalista. O casamento não é uma jornada alegre. Mas aqueles que não fogem às suas responsabilidades, que enfrentam as dificuldades e as vencem, colherão uma preciosa recompensa no aconchego e na intimidade da vida de família, na alegria de uma casa que não é apenas um lugar onde se dorme, nos interesses comuns, no consolo e nos prazeres de um lar unido. Se falo sobre isso com tanto sentimento, devo-o à felicidade que meu próprio casamento me trouxe, ao golpe de sorte que me deu uma esposa tão bem formada graças à educação que recebeu; tão paciente; dotada de tanta capacidade de renúncia e tão inteligente; acima de tudo, tão fiel em todas as vicissitudes de nossa convivência de trinta anos, que a vida sem ela agora seria inconcebível.

Muitas vezes me pediram para citar a virtude mais necessária à segurança de tão perfeita união. Sem dúvida, a resposta é: a lealdade. A pior ofensa que se pode fazer contra o casamento, o rochedo contra o qual a felicidade da família em geral se despedaça, é a infidelidade. São por mais numerosos – ai de nós! – os exemplos em que o nível da moralidade se rebaixa. A infidelidade é uma ordinarice, uma desprezível traição à confiança mútua, o mais vil dos pecados que figuram no livro dos malfeitos humanos.

Mas há outras deslealdades que, embora menos óbvias do ponto de vista material, são ao seu modo tão perigosas quanto a outra. Na minha clínica conheci uma família – mãe, pai, filho adolescente e filha – na qual, apesar das condições de prosperidade e do excesso de boas coisas que a vida lhes oferecia, reinava uma constante e latente desarmonia. A esposa era, sem dúvida alguma, uma mulher virtuosa. A mais leve insinuação de que pudesse ainda que remotamente vir a ser infiel ao marido teria sido por ela repudiada. Todavia, da manhã à noite seu desejo inconsciente parecia ser diminuir o esposo aos olhos dos filhos – alçando as sobrancelhas, trocando olhares irônicos com o filho ou a filha quando ele fazia uma observação ingênua, aparentando de certo modo criticar-lhe as opiniões, os trajes e até mesmo o físico.

Essa inerente deslealdade é do mesmo modo manifestada pelas esposas que falam mal do marido por trás dele, bem como pelos maridos que lastimam junto a outras mulheres do quanto são incompreendidos, e que para serem consolados por um amigo, um parente, ou uma mãe, contam-lhes tristes histórias desta ou daquela injustiça, dizem-se vítimas de extravagâncias, ou de crueldades, e em suas mútuas acusações correm toda a lista dos defeitos humanos que cada qual enxerga no outro mas é incapaz de reconhecer em si próprio.
Não há união que possa sobreviver a tais condições; uma casa dividida contra si própria jamais poderá manter-se em pé. Essas pessoas deviam calar-se, sorrir, se possível, cada qual das falhas do outro, esforçando-se por sufocar no riso esse horrível ressentimento que, aumentado e deformado, faz de João um monstro e de Maria uma bisbilhoteira sem coração. Nada contribui mais para o equilíbrio da família do que um pouco de sendo de humor.

Lembro-me muito bem de uma noite, nos primeiros meses de meu casamento. Eu voltava para casa, ou melhor, para os miseráveis cômodos que ocupávamos em Tregenny, naquela atrasada aldeia galesa onde eu começara a trabalhar e tentava formar uma clínica. Estava deprimido, preocupado com um caso difícil, morto de cansaço após um dia de trabalho estafante debaixo de chuva e varado de fome. Seria capaz de comer um boi inteiro. Mas em vez disso, minha jovem esposa delicadamente apresentou-me um único ovo quente. Com grande esforço consegui controlar-me e quebrei o ovo. Estava podre. Diante disso, tudo desabou. Comecei a soltar todos os nomes e pragas que conhecia. Ao que minha esposa, que de sua parte também tivera um dia cheio de tribulações, rebateu ao pé da letra. O bate-boca ia de mal a pior até que de repente, quando a coisa estava no auge, detivemo-nos de chofre, olhamos um para o outro com os olhos injetados, e realizando o absurdo daquela cena, disparamos a rir e caímos nos braços um do outro. Restabelecia a harmonia, tomamos o trem rumo à próxima aldeia que ficava a dez milhas de distância, lá embaixo no vale, saboreamos uma satisfatória Cia de faggots – que em galês equivale a salsicha – e fomos ao barracão coberto de zinco onde funcionava o cinema ver Charlie Chaplin em O Garoto. O que poderia ter sido um trágico rompimento, acabou numa alegre reconciliação, tudo porque duas criaturas jovens tinham suficiente compreensão para apreciar o lado cômico de um ovo podre.

Uma afável tolerância contribui muito para que as rodas da vida familiar girem suavemente e, principalmente quando somos mais velhos, a prática dessa hábil diplomacia à qual poderíamos denominar a arte da indulgência mútua, produz verdadeiros milagres. Se seu marido começar a ficar careca, a ofegar ligeiramente quando sobe uma escada, não faça comentário sobre esses brutais sintomas da passagem de anos. E se sua mulher principia a engordar – prenúncio de que a tão temida meia-idade se aproxima – diga-lhe em tom convincente que a sua gordura a tornou mais atraente do que quando você se apaixonou por ela. Se seus filhos são barulhentos e pouco asseados, se se sentam à mesa sem lavar as mãos ou deixam marcas de pés no assoalho recém-encerado, procure obter deles um comportamento melhor sem perder a calma nem recorrer ao expediente de “botá-los para fora com berros”. Um pouco de generosidade, um ligeiro estímulo, às vezes dão mais resultado do que cem chineladas.

A ternura a bondade são poderosos fatores na promoção da união e da estabilidade da família. Mais forte do que tudo, entretanto, é a necessidade de alguma manifestação do espírito religioso. Sem dúvida já vão longe os tempos em que a Bíblia era lida em voz alta em todos os lares. É possível também que a imagem de uma criança murmurando suas preces no colo de sua mãe seja encarada hoje por muitos com a irrisão com que se contempla um cromo sentimental do tempo antigo. Mas no lar em que os valores espirituais não forem até certo ponto respeitados, a família estará inevitavelmente fadada à dissolução. Nem só de pão vive o homem. A família que não buscar no Alto a sua inspiração nunca irá por diante. “A Família que se une para orar, permanecerá sempre unida”.


Desde o início dos tempos, o desejo fundamental do homem tem sido possuir uma companheira, ter filhos, poder dar-lhes abrigo, calor e alimento, protegê-los contra os perigos com que o mundo os ameaça. O advento do cristianismo  serviu para santificar e enobrecer esse impulso primitivo. E daí por diante, através dos séculos, a família tem-se conservado em lugar de relevo, não só na defesa da moralidade, como na evolução da cultura humana. Onde quer  que ela prospere e demonstre vigor e unidade, aí se encontrará uma sociedade sadia e sólida. Numa era de medo e de inquietude, em que o homem, cercado por forças hostis, sente-se perdido na mais negra solidão, é a família a sua maior, a sua derradeira esperança... da qual dependerá a sua autopreservação, a manutenção da dignidade humana e da decência da vida.

Pelos Caminhos da Minha Vida - A. J. Cronin

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