segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Cinema - Thérèse: The Story of Saint Thérèse of Lisieux (2004)

Caros leitores, uma das expressões de arte que mais me fascinam são as películas. Nesta arte, como em todas as outras, há suas expressões que fogem ao belo e ao bom, tornando-se assim má arte, filmes vazios, ou apenas "fotografias de gente que falam" como dizia sabiamente Hitchcock; porém, também há suas expressões que convergem ao belo e ao bom, tornando-se dessa forma, um sadio divertimento para alma humana, e fruto de edificação para nossa vida.

Procurarei, de forma bastante humilde, como é o meu conhecimento neste âmbito, postar aqui no blogue algumas isoladas exposições do bom cinema, e quem sabe críticas, e textos sobre esta arte viva.

Gostaria de iniciar, indicando primeiramente um filme estado-unidense de 2004, chamado Thérèse, o qual marcou-me profundamente, por ser eu, devoto da Santa que inspirou esta película.

O filme retrata a vida da grande Santa Teresinha do Menino Jesus, a mais jovem Doutora da Igreja. Trata-se de um pequeno resumo dos principais fatos de sua vida, fatos estes tão belamente expostos em sua auto-biografia, publicada sob o título "A História de Uma Alma" aqui no Brasil.

A qualidade do roteiro é muito boa, prendendo-se à uma sequência bem estudada da vida desta Santa; a fotografia e a atuação também são de boa qualidade, tornando as cenas vivas e incentivando-nos a acompanhar o desenrolar da história. O que deixa um pouco a desejar, é a qualidade da aproximação histórica, onde retratando-se uma história ocorrida na sua maior parte na França do séc. XIX, os atores falam inglês americano, mas trata-se apenas de um detalhe, que encareceria muito a produção.

Para aqueles que se sentiram encorajados a ver este filme, postarei abaixo links para acessá-lo, e também para comprar o livro da auto-biografia que rendeu esta bela produção do Cinema.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Santo Tomás de Aquino, o Doutor Angélico Universal

Extraído de 'A Existência na Filosofia de S. Tomás', de Etienne Gilson.

A natureza e o significado da obra de Tomás de Aquino não podem ser cabalmente compreendidos por aqueles que a abordam, de maneira direta, como se nada houvera antes dela. Quando começou a ensinar a Teologia, e, mais tarde, a Filosofia, Tomás de Aquino estava bem ciente da situação geral em que seu trabalho iria colocar-se.

Até os últimos anos do século XII, quando o mundo cristão descobriu a existência de interpretações não cristãs do universo, a Teologia cristã nunca se interessara pelo fato de que uma interpretação não cristã do mundo, como um todo, inclusive do homem e do seu destino, fosse ainda uma possibilidade aberta. Quando Tomás de Aquino começou a construir sua doutrina, vale dizer, de 1253 a 1254, a descoberta da filosofia grega pelo ocidente cristão era fato consumado — e nada devia ao próprio Tomás de Aquino. Sem dúvida, seus últimos comentários sobre Aristóteles muito contribuíram para mais exata interpretação da doutrina do filósofo, mas quem pretendesse que S. Tomás, a essa altura, por volta de 1250, estivesse descobrindo o mundo dos filósofos gregos, simplesmente se revelaria atrasado de 50 anos pelo menos. Nessa época todos os mestres cristãos sabiam que era possível apresentar uma explicação não-cristã do mundo, e sabiam em que ela consistia, ao menos em linhas gerais. Mas a questão da atitude apropriada a tomar-se a propósito desta explicação era complexa. Cada mestre teve de expor sua resposta a essa indagação.

Para um homem do século XIII, na Europa Ocidental, que era “ser filósofo”? Entre muitas outras coisas ser um pagão. Filósofo era um daqueles que, nascidos antes de Cristo, não puderam informar-se a respeito da verdade da Revelação Cristã. Tal era o caso de Platão e Aristóteles. O Filósofo, por excelência, era um pagão. Outros, nascidos depois de Cristo, eram infiéis. Tal o caso de Alfarabi, Avicena, Gabirol e Averróis. De qualquer modo, pode-se dizer que a primeira conotação da palavra filósofo era: pagão. Nada há de absoluto no uso das palavras: sem dúvida podem encontrar-se exceções. Boécio, por exemplo, foi às vezes chamado de “filósofo” e contado entre eles. Era, porém, excepcional este emprego do termo. Ao contrário, casos sem número se podem citar em que é certa a conotação pagã da palavra “filósofo”.

Cumpre, todavia, notar que isso era uma questão de costume, não de definição. Ao definir a Filosofia, nenhum teólogo do século XIII teria dito que ela é, por essência, pagã. Convidado a definir um filósofo, o mesmo teólogo provavelmente não diria que alguém não poderia ser filósofo se não fosse pagão. Ressaltamos apenas que, de costume, quando o teólogo dizia “os filósofos” ou “um filósofo”, tinha quase sempre em mente um homem que, não sendo cristão, dedicara sua vida ao estudo da Filosofia.

O paralelo entre “philosophi” e “sancti“, usado com freqüência pelos teólogos do século XIII, confirma nossa observação. Alberto Magno não hesita em citar duas séries diferentes de definições da alma: uma dos sancti, outra dos philosophi. Um filósofo, portanto, não era um “santo” (santo, não no sentido de canonizado, mas no de uma pessoa santificada pela graça do batismo cristão). Se um teólogo julgasse conveniente recorrer à Filosofia nos seus trabalhos teológicos, como foi o caso de S. Tomás de Aquino, não era normalmente chamado “filósofo”, e, sim, philosophans theologus (teólogo filosofante), ou, simplesmente, philosophans (um filosofante). A julgar pelo modo de falar, parece que não passava pela mente dos teólogos do século XIII que um homem pudesse ser a um tempo ambas as coisas: “filósofo” e “santo”.

Uma das conseqüências disso era que a Filosofia, na sua realidade concreta, se apresentava ao espírito de muitos teólogos como uma massa indiferenciada em que se encontrariam as lições de quase todos aqueles que, ou por não estarem ao corrente da verdade cristã, ou por não a terem aceito, tentaram obter uma visão consistente do mundo e do homem com os recursos apenas da razão. Este conglomerado filosófico é bem representado na enciclopédia de S. Alberto Magno, cujos elementos, tomados de todas as fontes disponíveis, se fundem e se reduzem a um espécie de unidade livre. Se conhecêssemos melhor tais enciclopédias, como a monumental Sapientiale de Tomás de York, elas nos dariam uma visão mais nítida do que representava a palavra filosofia para um teólogo do século XIII. Aristóteles está lá, especialmente na interpretação averroista; Platão, Avicena, Cundissalino, Gabirol, Cícero, Macróbio, Hermes Trismegisto, em resume, está representada toda a literatura filosófica disponível naquela época.

Menção especial deve fazer-se à influência dos mestres em artes nas primeiras universidades européias. Devendo ensinar a doutrina de Aristóteles, precisavam averiguar antes o sentido exato dos seus escritos. Ao fazê-lo, naturalmente tinham de dissociar deles os elementos de fé e de teologia cristã, mas tinham de dissociar também os elementos estranhos introduzidos pelos intérpretes. É revelador o fato de S. Tomás de Aquino, no Comentário das Sentenças de Pedro Lombardo, considerar ainda o Liber de Causis um autêntico trabalho de Aristóteles. Trata-se de algo mais do que um mero caso de falsa atribuição. Para atribuir o Liber de Causis plotiniano a Aristóteles é preciso que se tenha uma noção muitíssimo vaga do sentido global da metafísica de Aristóteles.

Nos anos em que esteve na Itália, de 1259 a 1268, S. Tomás de Aquino teve à sua disposição as traduções de obras de Aristóteles, ou as revisões de traduções, feitas por Guilherme de Moerbeka, e aproveitou-se dessa oportunidade para escrever comentários à doutrina do Filósofo. É difícil caracterizar em poucas palavras o novo Aristóteles visto por S. Tomás. Alguns de seus traços, pelo menos, no entanto, são facilmente visíveis. Rigorosamente falando, não é exato dizer que Tomás batizou Aristóteles. Ao contrário, em todo lugar em que Aristóteles ou contradiz a verdade cristã (eternidade do mundo) ou simplesmente a desconhece (criação ex nihil), S. Tomás ou o diz com franqueza, ou, ao menos, não lhe atribui o que ele não disse de modo expresso. Por exemplo, é notável que, ao comentar a Metafísica de Aristóteles, na qual a causalidade do Primeiro Motor é tão importante, S. Tomás de Aquino não usou uma vez sequer a palavra criação. Aristóteles não enunciara toda a verdade filosófica, e S. Tomás estava bem ciente disso.
Por outro lado, S. Tomás de Aquino viu com clareza que, nos escritos de Aristóteles, tais como os temos, alguns pontos não estão determinados de maneira completa. Em tais casos, nenhuma razão há para que a intrepretação da doutrina atribuída ao filósofo seja escolhida necessariamente no termo que menos facilite reconciliá-la com os ensinamentos da fé Cristã. No problema do intelecto agente, por exemplo, havia em Averroes um perceptível endurecimento da posição de Aristóteles. Tomás não achou útil tornar o aristotelismo mais frontalmente oposto à verdade cristã do que já o era nos trabalhos autênticos do próprio Aristóteles. Em resumo, pode-se dizer que Tomás removeu de Aristóteles todos os obstáculo à Fé Cristã não evidentes nos escritos dele. Seja como for, se batizou Aristóteles, não o fez nos “Comentários”, e sim, antes, nos seus escritos pessoais de Teologia. Assim procedendo, o batismo produziu seu efeito normal: primeiro teve de morrer o vetus homo para que nascesse um novo homem. O nome deste novo cristão havia de ser um nome cristão. Não seria Aristóteles: o seu verdadeiro nome seria S. Tomás de Aquino.

Depois de remover tais obstáculo desnecessários, S. Tomás de Aquino encontrou-se em posição bem diferente ao dos demais teólogos. Sem chegarmos ao ponto de afirmar que este Aristóteles purificado se identificou com a própria filosofia de S. Tomás de Aquino, devemos, pelo menos dizer que Aristóteles, para ele, se torno a verdadeira encarnação da verdade filosófica. S. Tomás viu, então, até onde poderia ir a filosofia na linha do pensamento. Além disso — fato muito importante — obtivera uma noção clar do que é filosofia, e isto despojou-o de muitas facilidade de que os teólogos anteriores haviam feito uso generoso.

S. Tomás não podia contentar-se com recorrer, em cada caso particular, à filosofia que, naquele ponto preciso, fosse mais facilmente conciliável com o cristianismo. Por exemplo: não podia aceitar a definição da alma humana formulada por Aristóteles, e, ao mesmo tempo, buscar em Platão a demonstração da imortalidade da alma. É importantíssimo ter em mente, ao abordar os trabalhos de S. Tomás de Aquino, que ele não mais podia contentar-se com um ecletismo filosófico na elaboração de sua teologia, uma vez que compreendera o que é, realmente, uma visão filosófica do mundo. Se sua teologia devia utilizar-se da Filosofia então cumpria-lhe estabelecer sua própria filosofia. Em outras palavras, como teólogo, S. Tomás precisava de um conjunto de princípios filosóficos aos quais recorreria sempre que necessário no curso dos trabalhos teológicos. Em termos gerais, estes princípios podem considerar-se “uma reinterpretação — das noções fundamentais da metafísica de Aristóteles, à luz da verdade cristã.” As três noções — ser, substância e causa eficiente — podem definir-se, praticamente no tomismo, pelos mesmos termos da doutrina aristotélica: certo é, porém, que as velhas palavras de Aristóteles recebem, no tomismo, sentido inteiramente novo.

Daí vem a possibilidade, sempre aberta, de reduzir-se a doutrina de S. Tomás de Aquino à de Aristóteles. Pelo menos podem atribuir-se corretamente duas metafísicas diferentes a S. Tomás, a metafísica de Aristóteles ou a que é própria a S. Tomás de Aquino — pois que a linguagem técnica permanece praticamente a mesma.
O fato acarretou duas conseqüências para a teologia tomista. Primeiro, S. Tomás teve de submeter a um exame crítico o ecletismo filosófico de seus predecessores. Como ele não se contentaria, ao discutir problemas teológicos, com recorrer, em cada caso particular, à filosofia que lhe permitisse reconciliar razão e revelação como mínimo esforço possível, teve de eliminar todas as posições teológicas que, aceitáveis embora no ecletismo, eram incompatíveis com a sua própria concepção de filosofia.

Por outro lado, como a Teologia se associa intimamente à vida religiosa, nenhum teólogo poderia riscar, pura e simplesmente, tudo quanto, nesta matéria, se fez e se ensinou antes dele. Teve S. Tomás, portanto, de reinterpretar as posições de seus predecessores à luz dos seus próprios princípios filosóficos. Daí a curiosa — mas inevitável — perspectiva que o faz aparecer como alguém que constantemente se equivoca sobre a doutrina dos seus predecessores. Que isto seja ilusão, percebe-se facilmente pelo fato que o resultado do que se chama a “sua interpretação” é sempre o mesmo: fazer os predecessores ensinarem uma doutrina que muito se assemelha com aquela que ele próprio está ensinando. S. Tomás de Aquino tem linguagem própria, mas está sempre disposto a aceitar a linguagem de qualquer outro, contanto que seja possível fazê-la dizer aquilo que ele próprio tem como verdadeiro. Tal constância na orientação do método interpretativo não pode resultar de uma série de erros acidentais de interpretação. O que S. Tomás de Aquino faz dizer a Boécio, ou o que ele atribui ao autor do Liber de Causis, às vezes contra a evidência histórica positiva, expressa simplesmente o desejo de deixar intacta a linguagem teológica já recebida e de preservar o espírito da verdade, contido nas doutrinas antigas. É para isto que S. Tomás constantemente põe vinho novo nos velhos barrís, depois de remendá-los.
O sincretismo teológico, sobre o qual (ou dentro do qual), S. Tomás teve de exercer o trabalho crítico, compunha-se de muitos elementos diferentes. A lógica que utilizou era inteiramente aristotélica. Como o fez para a metafísica, recorreu à interpretação de Avicena, sem os erros evidentes do ponto de vista da fé cristã. Serviu-se também do Liber de Causis, do Fons Vitae, de Gabirol, e de muitas outras fontes secundárias, em que dominava a tradição platônica: tal foi em particular o caso de Boécio. Mas o núcleo desse ecletismo era constituído pelo que ainda sobrevivia da teologia de Santo Agostinho.

Havia boa razão para isso. S. Agostinho era, desde muito, a maior autoridade teológica no mundo cristão latino. O De Trinitate, entre muitos outros escritos, era objeto constante de meditação para todos os teólogos, e os inúmeros fragmentos de S. Agostinho, inseridos por Pedro Lombardo nas “Sentenças”, eram suficientes para assegurar a sobrevivência de sua influência nas escolas do século XIII. A filosofia usada por S. Agostinho, na elaboração da Teologia, fora a de Plotino, ou melhor, uma versão revista da filosofia de Plotino. O pensamento filosófico pessoal de S. Agostinho está para o de Plotino como o pensamento filosófico pessoal de S. Tomás de Aquino está para o de Aristóteles.

O problema de S. Tomás de Aquino era, então, manter aquilo que tinha por verdadeiro, sem destruir posições teológicas fundamentalmente boas, ou pelo menos, comumente ensinadas como verdadeiras durante tantos séculos. Em 1956, passaram-se 682 anos da morte de S. Tomás. Mas quando ele morreu, em 1274, 834 anos já haviam passado desde a morte de S. Agostinho. Não nos é fácil avaliar as dificuldades da tarefa de rever discretamente uma a uma, posições doutrinais que, aos poucos, se tornavam indistinguíveis da verdade revelada, de que davam uma certa explicação.

Uma coisa, ao menos, é certa. Como quer que interpretemos o trabalho de S. Tomás de Aquino, para ele esse trabalho permanecerá sempre o de um professor da verdade cristã. Nascido em 1255, tinha S. Tomás seis anos de idade quando, em 1231, seus pais o colocaram como Oblato no Mosteiro beneditino de Monte Cassino. Daí por diante, Tomás nunca deixou de pertencer a uma ordem religiosa, primeiro como beneditino, depois como dominicano. De certo modo ele nunca deixou de sentir e de comportar-se como beneditino. Sua atitude em face do estudo está dominada por esse fato.

Desde os primórdios do cristianismo debateu-se a questão de saber até que ponto os cristãos, particularmente os padres e muito especialmente os monges, teriam permissão para estudar , ou seriam a isso encorajados. S. Tomás de Aquino nunca teve hesitações a este respeito. Na Summa Theologiae propôs resolutamente a questão, pela fórmula mais desafiadora: de fato, não indagou se os monges poderiam ter permissão para estudar, e sim se poderia instituir-se uma ordem religiosa com o fim de dedicar-se aos estudos (S. Teol., IIa IIae, q. 188, a. 5). E sua resposta é afirmativa. Mas o que é interessante considerar são os argumentos com que fundamenta esta afirmativa.

Alguns deles fundamentaram-se nas necessidades da vida ativa: o pregador tem de aprende alguma coisa, se realmente quer pregar. Outros se apoiam nas necessidades da vida contemplativa. Para limitar-se a este segundo grupo de argumentos, observamos inicialmente que os estudos que S. Tomás tinha em mente são os que ele chama de “studia litterarum”. Parece entender por esta expressão, ante de mais nada, o estudo das letras sagradas, ou seja, o estudo da Sagrada Escritura. Tratando da vida contemplativa, S. Tomás de Aquino fixou-lhe, como objeto principal, perscrutar a verdade divina, porque essa contemplação é o fim de toda vida humana. Em segundo lugar, e como para encaminhar a este elevadíssimo objeto, S. Tomás atribui à vida contemplativa a consideração dos efeitos de Deus, consideração que nos leva, como pelas mãos, ao conhecimento do autor desses efeitos. É óbvio que a inclusão do estudo das criaturas entre os fins legítimos da vida contemplativa, implica o reconhecimento dos estudos científicos e filosóficos como objeto legítimos dos estudos monásticos.

S. Tomás de Aquino nunca se afastou desta posição. Sustentou sempre que eram lícitos aos monges os estudos científicos e filosóficos. Sustentou sempre explicitamente que, uma Ordem Religiosa instituída para dedicar-se ao estudo, podia legitimamente incluir ciência e Filosofia nos seus programas, atendendo apenas a que estes estudos se orientassem para a contemplação de Deus, como seu próprio fim. Foi perfeitamente claro neste ponto: “A própria contemplação dos efeitos divinos pertence, secundariamente, à vida contemplativa, pois que o homem por ela se eleva ao conhecimento de Deus” (S. Teol., IIa IIae, 9. 180, a 4, resp.).

Isto nos basta para entender a natureza dos trabalhos de S. Tomás de Aquino. Nada de misterioso a seu respeito. Freqüêntemente eles recorrem à consideração, ou como diz S. Tomás, à contemplação do mundo das coisas naturais; contudo, neles, ciência, lógica e filosofia nunca servem a outro fim que não seja a mais perfeita contemplação de Deus. A resposta mais simples para a debatida questão de saber se há uma filosofia nos trabalhos de S. Tomás de Aquino, é sim, há; ela, porém, se destina sempre a facilitar nosso conhecimento de Deus.

O fato está fora de discussão. A pergunta seguinte seria: pode um filósofo considerar como filosófico esse estudo da natureza e essa especulação filosófica concebida como um passo para o conhecimento de Deus? A resposta naturalmente é: depende. Depende do filósofo e da idéia que tem da Filosofia. Não creio que esta noção da Filosofia seduzisse John Dewey, ou Carnap, ou, para estender um pouco o sentido da palavra “filósofo”, Bertrand Russel. Mas muitos filósofos, que nada têm de comum com S. Tomás de Aquino, ressentir-se-iam bastante com tal limitação da Filosofia. Os filósofos gregos — para considerar os únicos que S. Tomás de Aquino conheceu — eram de opinião, precisamente, que a suprema ambição de todo verdadeiro filósofo era conhecer a Deus.

Detenho-me um momento, pois este é um ponto que parece escapar à atenção de muitos críticos de S. Tomás de Aquino, alguns deles católicos, que parecem surpreendidos por ver um cristão, teólogo e monge, manifestar interesse tão apaixonado pelos escritos de um pagão como Aristóteles. Mas, exatamente como monge cristão, S. Tomás de Aquino estava impressionado com o fato de, séculos atrás, ter já o pagão Aristóteles buscado o mesmo objetivo que ele próprio indicara como seu. Não hesitaríamos nisto se tivéssemos um pouco mais de imaginação. É bem possível que, para convencer alguns de nossos contemporâneos que S. Tomás de Aquino era verdadeiro filósofo, seria mais fácil apresentá-lo como interessado apenas em filosofia; mas, do seu ponto de vista, o maior de todos os filósofos estivera interessado, principalmente, com o problema de Deus.

Releiamos as surpreendentes declarações de S. Tomás de Aquino sobre este assunto, para ele, o verdadeiro nome da Sabedoria era Jesus Cristo; portanto Cristo é a verdade; ora, que disse o Cristo a esse respeito? Eis a resposta de S. Tomás de Aquino: “Por suas próprias palavras a Sabedoria divina dá testemunho de que asumiu a carne e veio para o mundo para dar testemunho da verdade.” (Jo 18,37). O Filósofo afirma que a Filosofia primeira é a ciência da verdade, não de qualquer verdade, mas daquela que é a origem de toda a verdade, ou seja, aquela que pertence ao primeiro princípio pelo qual todas as coisas existem. A verdade pertinente a tal princípio é a fonte de toda verdade; porque as coisas têm na verdade a mesma ordem que têm no ser.” (C. Gent., I, 1-3).

Longe de imaginar que se deva encontrar alguma oposição entre a finalidade da indagação filosófica e a da indagação teológica, S. Tomás pensa que o objeto último delas é o mesmo. Em C. Gent. I, 4, apresenta o conhecimento de Deus como o “mais alto cimo ao qual a investigação humana pode chegar.” Por outras palavras, há completo acordo entre o ensino do doutor da verdade cristã e o do filósofo, na medida em que, no plano do conhecimento natural, também o filósofo é um teólogo.

Qual, então, a diferença entre eles? S. Tomás formulou a pergunta na mesma Questão da Summa em que sustenta que se pode estabelecer uma Ordem Religiosa para dedicar-se ao estudo. Examinou, aí, a seguinte objeção: “o que professa um monge cristão deve ser diferente do que professam os pagãos. Ora, entre os pagãos há alguns professores de Filosofia. Mesmo hoje alguns seculares se chamam professores de certas ciências. Conseqüentemente, os monges nada têm que ver com o estudo das letras.” Responde S. Tomás de Aquino: ainda quando estudam a mesma matéria, os filósofos e os monges não a estudam com o mesmo fim: “os filósofos costumam ensinar as letras como parte da educação secular. Mas compete principalmente ao monge dedicar-se ao estudo das letras relativas à doutrina que “diz respeito à piedade” (Ep. a Tito I, 1). Quanto aos outros ramos das ciências, seu estudo não convém ao religioso, cuja vida toda deve estar a serviço de Deus, a não ser na medida em que se ordenam à doutrina sagrada.” (S. Teol., IIa IIae, q. 188, a. 5, ad 3).

O próprio S. Tomás de Aquino nos assegura, assim, que todos os seus estudos, todos os seus trabalhos, inclusive os comentários das obras de Aristóteles, diferem dos trabalhos dos “filósofos”, porque, no seu caso, a verdadeira finalidade é o estudo da Sagrada Escritura. Foi fiel à sua vocação religiosa: aut de Deo aut cum Deo — Quando não falava de Deus, falava com Deus.
Com isso chegamos ao limiar do nosso último problema, e, segundo creio, ao início da solução. Quando filosofa, nos trabalhos de Teologia, que faz S. Tomás? é teólogo, ou filósofo? De início devemos dizer que é impossível dar uma resposta aceitável por todos. Tudo depende da definição de Teologia tomada como ponto de partida. Embora haja muitas definições de Teologia (praticamente tantas definições quantos teólogos), um elemento, pelo menos, é comum a todas; a saber: a Teologia considera todos os seus objetos à luz da revelação divina.

As diferenças de interpretação começam quando os teólogos procuram definir as relações existentes, dentro da própria Teologia, entre revelação e razão.

Temos hoje uma noção pobre da Teologia, muito diferente da gloriosa imagem familiar aos leitores de Dante, tão esquecida em nossas escolas. É verdade que o teólogo, como entende S. Tomás de Aquino, vê todas as coisas à luz da revelação divina, mas é grave erro imaginar que, no verdadeiro tomismo, ver uma verdade à luz da revelação divina consista necessariamente em partir de uma verdade revelada, como de uma premissa, para dela inferir alguma conclusão.
Fazer isso é, realmente, teologizar. S. Tomás de Aquino concederia mesmo que a verdade teológica, própria e essencialmente, consiste na verdade que Deus nos revelou e que não poderíamos conhecer por outro modo. Esta é o “revelado”: o revelatum, isto é, aquilo que por essência tem que ser revelado para ser conhecido, pura e simplesmente. Mas em torno deste cerne do conhecimento essencialmente teológico há vasta área de especulação racional que, por cooperar com o trabalho da revelação, está também incluído no trabalho do teólogo.
Além da verdade que não se pode conhecer sem a revelação divina, muitas verdades há que não estão fora do alcance da razão humana, mas foram, não obstante, reveladas por Deus ao homem. Por que? Porque é necessário à salvação do homem que estas verdades sejam conhecidas, e, desde que, por várias razões, nem todos os homens são capazes de descobri-las através da indagação filosófica, Deus revelou-as a todos. Ainda que reveladas a todos, estas verdades são cognoscíveis racionalmente. Toda investigação racional dedicada à investigação daquilo que, muito embora revelado por Deus, é conhecível racionalmente, constitui parte da Teologia, tal como a entende S. Tomás de Aquino.

Um fato basta para prová-lo. A Summa Contra Gentiles é um tratado puramente teológico. Foi às vezes chamada a “Suma filosófica” porque contém de fato grande proporção de especulação puramente racional. Mas o prólogo mostra, de modo claro, que a intenção do autor, ao escrevê-la, foi puramente religiosa. Reconhecemos aí o Dominicano que estamos habituados a ouvir na Summa Theologiae, quando, no capítulo II da Contra Gentiles, S. Tomás faz suas as palavras de S. Hilário: “Estou consciente de que devo a Deus a principal obrigação de minha vida, que minha palavra e minha inteligência possam falar dele.” Além disso, São Tomás diz (C.G. II, 4, 6) que, na Contra Gentiles, ele segue a ordem teológica que procede de Deus para a criatura, e não a ordem filosófica que procede da criatura para Deus. Qual é, na Contra Gentiles, a proporção da especulação destinada às verdades reveladas que são inacessíveis à razão sem o auxílio da Fé? Uma quarta parte do todo. O próprio S. Tomás de Aquino o diz. No Prólogo do Lv. IV. 1, 10, S. Tomás assinala a mudança de atitude, de método e de ordem: “no que precede, as coisas divinas foram objetos de exposição na medida em que a razão natural pode obter conhecimento delas pelas criaturas: imperfeitamente, é claro, e conforme à capacidade de nossa inteligência… Agora resta falar daquilo que foi divinamente revelado para nós como algo que se deve acreditar, pois que excede à razão.” Portanto, na Summa Contra Gentiles, três partes da obra estudam as verdades acessíveis à razão humana; e ainda assim todas as coisas nela são Teologia. Evidentemente, S. Tomás adotou este plano porque desejava mostrar aos pagãos e infiéis, que não acreditavam nas Escrituras, quão longe a razão humana pode ir sozinha a caminho da revelação cristã, mas, proceder assim, é precisamente o que São Tomás de Aquino chama ensinar Teologia. Tudo o que está na Contra Gentiles, inclusive a ordem de exposição, é Teologia. Tudo o que está na Summa Theologiae ( e o próprio nome bastaria para o tornar claro), é Teologia. Numa palavra, tudo o que ensinamos nas Escolas como Filosofia de São Tomás de Aquino, foi primeiro ensinado por ele nos tratados teológicos, como parte da verdade teológica.
Seja portanto isto ponto pacífico: como a Teologia inclui tudo o que se pode conhecer à luz da revelação, inclui o que S. Tomás chamou: “a verdade sobre Deus alcançada pela razão natural”, e que, no entanto, Deus “convenientemente propôs ao homem para crer” (C. G. I, 4, título). Isto não é tudo. Além daquilo que o homem não pode conhecer sem a revelação, e além daquilo que o homem conhece, de modo mais fácil e perfeito se lhe é revelado, há o imenso campo de tudo aquilo que, embora não atualmente revelado, pode ser usado pelos teólogos como meios para estabelecer, de modo racional, a verdade revelada, quando isto é possível, ou, ao menos, para defendê-la contra as objeções dos adversários. Na doutrina de São Tomás de Aquino, tudo o que pode servir ao principal objetivo do teólogo, que é fazer conhecer melhor o sentido da verdade revelada, é, pela mesma razão, Deus que a revelou sob a razão formal da revelação, e, portanto, pode incluir-se na Teologia. S. Tomás de Aquino não fixou limites à extensão possível do campo da especulação teológica. Chama revelabilia, “revelável” todo o material não especificado que, segundo o seu talento, gênio, ou aprendizado pessoal, o teólogo pode pôr a serviço da Teologia.
A Filosofia, incluindo todas as ciências que esta palavra evocava na linguagem de Santo Tomás, pode, portanto, integrar-se na Teologia, sem abdicar de seus métodos próprios ou quebrar a unidade da sabedoria teológica. A serviço da Teologia a Filosofia guarda as suas características, mas serve a um fim mais alto.

Esta noção elevada da Teologia assume sentido total à luz de uma observação feita várias vezes por Santo Tomás de Aquino, à qual ele dá grande relevância, ao passo que nós relegamos como não importante para nossos problemas. “Os objetos que são matérias das diferentes ciências filosóficas podem ser ainda tratados por esta única doutrina sagrada, sob um aspecto, a saber, na medida em que são divinamente reveláveis. Deste modo, a doutrina sagrada traz a marca da ciência divina, que é uma e simples, ainda que se estenda a todas as coisas.” (S. Teol. Ia., q. 1, a. 3, ad 2 um).

Estamos no centro da noção tomista de Teologia, concebida como ciência. Todo o saber humano está, nessa concepção, à disposição do teólogo, que dele se serve em vista do seu fim. Não há limites? Sim, realmente, há limites. Nem todo conhecimento humano é igualmente importante para a interpretação da verdade revelada. Ainda assim, esta restrição se deve antes às limitações do homem do que aos objetos das disciplinas filosóficas ou científicas. Na ciência divina, nada conhecível é sem importância para Deus. Na ciência teológica, nada do que nos pode fazer conhecer melhor a Deus é sem importância. Como diz S. Tomás de Aquino na Contra Gentiles, com energia insuperável: muito embora instrua o homem principalmente sobre Deus, a fé cristão faz também do homem, “através da luz da revelação divina, um conhecedor das criaturas” (per lumen divinae revelationis eum criaturaram cognitorem facit), de tal modo que “nasce, então no homem uma espécie de semelhança com a sabedoria divina” (C. G. II, 2, 5). E, realmente, se a Teologia pudesse conhecer as coisas como Deus as conhece, conheceria todas as coisas sob uma só luz, a luz divina. Não é esse conhecimento acessível ao homem nesta vida, mas, a Teologia, pelo menos, nos dá uma pálida idéia da espécie de conhecimento que é aquela sabedoria, que tudo abrange.

Podemos agora dizer onde se pode normalmente encontrar a maior parte do material que integra a estrutura da Filosofia de São Tomás: quase toda nos trabalhos teológicos escritos por Santo Tomás de Aquino. Poder-se-ia extrair a mesma doutrina do texto dos comentários de São Tomás sobre Aristóteles? Pelo que sabemos, a maior parte certamente não. Então, é ela Filosofia? Teologia? Em resumo, que é?

Do ponto de vista de S. Tomás, era Teologia. Para ele a integração da Filosofia na Teologia de nenhum modo diminui o valor racional da filosofia. Como quer que a chamemos, uma demonstração racional é uma demonstração racional. Havendo reduzido a Teologia ao conhecimento de Deus, que prova suas conclusões pela autoridade das sagradas Escrituras, não pela luz natural da razão, alguns de nossos contemporâneos não podem entender como uma conclusão possa ser ambas as coisas, puramente racional e, ao mesmo tempo, teológica. O problema, em grande parte, é verbal, neste sentido ao menos que a resposta permanece dependente de certa definição de Teologia. Quanto a nós, o que queremos dizer nestas observações, é que a coisa é de todo possível, se levarmos em conta a noção de Teologia elaborada por São Tomás de Aquino.

Adianto logo, porém, que não consigo ver como nossos contemporâneos possam admitir esta doutrina. Para eles, qualquer contato entre Filosofia e Teologia é suficiente para privar a Filosofia da pureza racional. Neste ponto, Descartes ganhou certamente a batalha, tanto que, hoje, ninguém ousaria apresentar-se como professor de Teologia, ensinando, dentre outras, conclusões demonstráveis, como se fossem tão racionalmente válidas quanto as que ensinam os professores de Filosofia. Estes últimos não acreditariam nele, e nem mesmo se acreditaria em si próprio. Presentemente, a separação da Filosofia da Teologia parece fato universalmente aceito. Será, talvez, uma das razões pelas quais em 1879, o Papa Leão XIII, na Encíclica Aeterni Patris, propôs que se chamasse “filosofia cristã” a maneira de filosofia própria dos mestres da Escolástica, admiravelmente exemplificada por Tomás de Aquino.

Seria vã esperança supor que esta sugestão pudesse encontrar apoio universal. Entre as características herdadas do povo judeu pelo povo cristão, podemos incluir a de “povo de dura cerviz”. Seria, porém, bom dar ao povo “palavras” que disputem a respeito? O que realmente conta é que estejam de acordo sobre as “coisas”. E, nisto, uma coisa ao menos é certa: como quer que prefiramos designar esta doutrina, a mais compreensiva expressão da verdade cristã, tanto filosófica como teológica, continua sempre ao nosso alcance nos trabalhos de São Tomás de Aquino.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Gramática e barbárie


A santa ranzinzice dos bons gramáticos serve aos usuários de qualquer idioma como balizadora do que se convencionou chamar de “norma culta”. E muito mais que isso: sem a gramática, como diz o prof. Carlos Nougué — que está finalizando o primeiro volume de suas Lições de Português, a ser apresentado no próximo ano —, a língua tende à entropia, à dissolução, à impermanência. Em certo sentido, a gramática é a pedra angular da cultura de uma nação, na medida em que uniformiza os conceitos mentais implicados no uso virtuoso do idioma, sem o qual não há filosofia, nem direito, nem literatura. Até ao jornalismo, hoje tão facilmente adaptável a novidades, tão fomentador de impropriedades e barbarismos, tão useiro em difundir o mau uso do idioma, faz falta o norte gramatical.

Em poucas palavras, sem o vernáculo, que a gramática busca preservar, não há idioma comum. Lembremos que vernaculum, como ensinava Napoleão Mendes de Almeida, provém do latim verna, vocábulo que aludia ao escravo nascido na casa do senhor — e de “nascido na casa do senhor” passou a palavra a significar “nascido no país” ou “próprio do país”. Defender o vernáculo é, pois, defender a permanância da cultura de um país, a sua propriedade fundamental, a tradição sem a qual um povo perde o seu caráter, perde as marcas que o distinguem no tecido da história.
Se hoje os nossos jovens não conseguem ler sequer uma página de Machado de Assis ou do Padre Antônio Vieira sem quase ter uma concussão cerebral, é porque os gramáticos de alguma maneira naufragaram em sua tarefa. Um exemplo disto nós o podemos dar na recente e absurda “reforma” ortográfica da língua portuguesa, que teve num gramático — Evanildo Bechara — um de seus fomentadores, ainda que ao modo de omissão com relação a mudanças injustificáveis que recusamos aceitar neste modesto espaço na internet, embora no cotidiano de nosso trabalho sejamos obrigados a adotar a intervenção imposta pelo Estado luliano (logo no governo de quem!) nos usos da língua pátria.

Se por trás das políticas de destruição do idioma, no Brasil e noutros países, está o objetivo de debilitar as identidades nacionais com o intuito de preparar o governo global — cujos tentáculos começam a nos alcançar —, não sabemos. Mas sabemos que, neste momento dramático da história humana, é preciso criar em cada país ilhas civilizatórias para preservar o que for possível, e isto passa necessariamente pelo DNA da língua, que é a gramática. Trabalho análogo ao que os monges irlandeses fizeram entre os anos 500 e 800, entesourando a tradição literária e cultural cristã em meio à barbárie crescente.

Sem a gramática, a língua seria um perpétuo e caótico devir, ao modo heraclíteo, seria impermanência pura, como diz o citado Prof. Nougué. A gramática — e não a lingüística — lhe garante a permanência na mudança sem a qual, como dissemos, nenhuma nação possui identidade própria.

Encerramos este breve texto destacando que tudo o que é usado por muitos, ao longo do tempo e em diferentes lugares, tende naturalmente à entropia, se não existe um elemento normatizador — definidor de padrões comuns que, embora aceitem mudanças adventícias e acidentais, preservam o essencial, o quid est.

E este é o papel da gramática como preservadora da civilização. É seu papel de contenção, de dique à barbárie.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Vinicultura, um sinal de civilização

Caros leitores, pela andanças na internet, deparei-me com um video 'documentário' português, sobre a vinicultura na região do Rio Douro, em Portugal.

Trata-se de uma sequência de imagens, onde procurou-se retratar um pouco da vida dos vinicultores da região, vida simples e pacata, mas de uma paz imensurável, e mui rica pelas tradições desta região, sua cultura, e pelas artes que ali se fomentaram.



A poda das parras, os tratos com a terra, as cantigas que as moças entoam no campo, o diapasão presente sinalizando que ali há arte, a taça e o vinho, tudo isso num harmônico panorama, uma paisagem de civilização.

O video foi produzido em homenagem à criação dos Vinhos Quinta dos Murças, pela Esporão. E no site desta vinícola tradicional de Portugal, encontra-se uma boa descrição da região Douro e sua história na vitivinicultura:

"A região vinhateira do Douro insinua-se numa exuberância de montes, vales e cursos de água. Os seus típicos socalcos testemunham a tenacidade de quem, desde tempos imemoriais, se dedicou ao cultivo da vinha. Pois que, se o rio Douro recortou a paisagem, ao homem caberia reconverter as encostas xistosas e íngremes das suas margens. Descobertas arqueológicas e referências documentais provam que já na pré-história, e sobretudo durante a ocupação romana da Península Ibérica, a partir do século III a. C., se praticava a viticultura na região. Mas só bastante mais tarde, no século XVIII, a vitivinicultura do Douro entrou numa fase de expansão, que se traduziu num crescimento acelerado do comércio de vinhos, designadamente para o mercado externo. E é neste contexto socioeconómico que surge a designação vinho do Porto..."

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Pronunciamento do Senador Demóstenes Torres sobre o Enem 2010

Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores,

O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) começou em 1998, fazendo o levantamento das unidades de ensino, e, agora, avalia o aluno. No anterior, como nesse, os três acabaram reprovados: a escola, o corpo discente e o Enem. O mais recente, de 2010, trouxe o retrato de que o Brasil abandonou o velho 2º Grau, inclusive depois de rebatizado, fotografou uma moldura que circunda aulas desinteressantes, escolas caindo aos pedaços, professores desmotivados e estudantes reduzidos a preparações para se filiar nos propósitos chavistas. A meta oficial é espetar uma estrelinha vermelha no peito de cada um dos 5,4 milhões que lotarão as salas no próximo mês para o Enem 2011.

Vestibular é um modo falho de aferir saber, e, por isso, aplaude-se e se adota o Enem em universidades sérias. O problema é o conteúdo das provas: abaixo da crítica, acima do tolerável. Elas insistem nos erros do vestibular, com o agravante da padronização nacional; equívoco que aparecia na seleção de uma faculdade ganhou amplitude de continente.

Na escala da gravidade dos desacertos, o pior é a doutrinação, e, logo, vem o generalizar da má gestão. As crianças se submetem à Provinha Brasil, no 2º ano de escolarização, e os adolescentes, à Prova Brasil, do 5º ao 9º ano. Quando o cidadão está entrando na juventude, o Governo o cerca com os salamaleques esquerdistas do Enem. Não importa a faixa etária: nos diferentes exames, existe o trabalho sujo de formar consciências sob mando dos burocratas.

Sr. Presidente, o ideal seria que 100% dos estudantes participassem do Exame, mas as seguidas trapalhadas desmoralizaram o Enem em seu período de maior soerguimento. Pouco mais da metade se inscreve, e, em alguns casos, a omissão é deliberada, para evitar que se balize o quadro negro escondido pelos boletins no azul. Por não ser obrigatório, o Exame esbarra nessa bagunça. A maioria dos ausentes é de escola pública, dificultando o diagnóstico. O Governo tentou mascarar o horror de outra maneira, supervalorizando a redação, que seus terceirizados corrigem de acordo com as ordens emanadas.

O tema da dissertação de 2010 foi “O trabalho na construção da dignidade humana”, com dois textos-base: “O que é trabalho escravo” e “O futuro do trabalho”. Certamente, quanto mais o examinando deitou falação contra o serviço e sobre o tanto de suor derramado para vencer na vida, maior foi a sua nota. Pelas demais provas, é possível deduzir o que o Enem deseja: basta fazer um panfleto contra a exploração da mais-valia. O truque para inflar os dados das escolas públicas reside também em um detalhe: o que o aluno escreve em até oito linhas vale o mesmo que as 180 questões das quatro provas de múltipla escolha.

Um representante dos colégios particulares tirou exemplo do funcionamento do estratagema do Governo: uma escola pública ficou na posição de nº 571 em Matemática e por causa da redação sobre trabalho escravo subiu para 19º lugar nacional. É ótimo que reconheçam a importância da escrita de punho e da elaboração própria, pois isso certifica a capacidade de intelecção. Porém, quem vai decidir isso é alguém do instituto responsável pela prova, contratado pelo Ministério da Educação, que tem total interesse em revelar que o ensino público vai bem.

O tiro saiu pelo lombo de quem mandou dar. Na ressonância magnética realizada pelo Enem, o laudo da educação básica a classifica como péssima, mesmo com a ajudinha sorrateira do Enem. Das 14.247 escolas públicas, 8 amealharam 700 pontos ou mais. Repito: apenas 8 em 14.247 escolas públicas obtiveram da nota 7 para cima. Foi incrível o descaramento das autoridades que comemoraram uma suposta alta na média do Enem de 2009 para 2010, de 501,58 pontos para 511,21 pontos. O máximo seria mil pontos.

Para subir esses meros 2%, apelou-se para uma série de mecanismos, sendo o principal deles o incentivo para que as Instituições de Ensino Superior (IES) colocassem o Enem no lugar do vestibular. Por isso, pululam cursos preparatórios para o Enem. Querem se ver livres do vestibular, repisando os vícios do vestibular. À Prova Brasil e ao Enem, acrescentem-se deslizes colossais, como a propagação de livros pornográficos por bibliotecas dos colégios.

Enfim, é desnecessário ser bom em adição para resolver uma operação simples: a meta maior não é educar, mas é doutrinar; não é convencer o aluno a ler os clássicos, mas a obedecer à cartilha.Nos cursinhos específicos, professores e aprendizes estão pegando o que chamam de “manha do Enem”, com os antigos macetes. Isso é o oposto de aprender ensinamento, serve unicamente para alcançar nota no Enem. Eles ouvem os discursos da bancada oficial no Congresso, acompanham os monólogos da Presidenta Dilma Rousseff e as explicações da aparvalhada equipe. Pronto! Estão diplomados em enrolação.

Os redatores do Exame são militantes que honram a tradição da turma, a ponto de perguntas e respostas terem a mesma linguagem dos jargões do Governo. O engajamento é tamanho, que, como o último Enem foi gestado ainda sob o Governo Lula, se houvesse prova oral, esta seria aplicada por um sujeito com a língua presa.

O inteiro teor dos testes segue igual diapasão. Os estudantes são treinados a responder o que o Governo quer, pois assim é elaborado o gabarito. Vamos conversar sobre tópicos do Enem de 2010, cujos resultados saíram há duas semanas. Além da redação, foram aplicadas provas de linguagens, códigos e suas tecnologias; ciências humanas e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias; e matemática e suas tecnologias.

A tecnologia que falta na rotina das aulas sobra nos nomes complicados atribuídos às áreas do conhecimento. No geral, os testes mostram que o Enem é usado como concurso ideológico para membros da esquerda festiva. As folhas têm as mesmas questões, mas, para complicar a famosa cola, foram divididas em cores. A enfocada aqui é a prova amarela do primeiro dia de avaliação.
A Questão nº 02 clareia a linha de raciocínio do aluno ideal para o Governo. A página é ilustrada com um gráfico referente a 1998, com 53% do território rural brasileiro dividido em terrenos com mais de mil hectares: 30,5%, de 10 a 100 hectares; 15,2%, de 100 a 1.000 hectares; 1,3%, até 10 hectares. Portanto, não foram contabilizadas as glebas distribuídas nos últimos treze anos, principalmente no período Lula, em que a pressa para atender a companheirada do MST e entidades assemelhadas disparou o preço do alqueire.

Com as informações, o avaliador ostenta cinco alternativas nas quais o aluno deve indicar a que possui "característica da estrutura fundiária brasileira". Nenhuma delas faz referência à agropecuária, que permite o saldo positivo da balança comercial, uma das dádivas com que o campo brinda seus algozes do Plano Piloto, da Esplanada à Praça dos Três Poderes. Pelo contrário, os produtores são tachados de forma pejorativa, independentemente de qual parêntese vai granjear o "x" ou o quadrinho a ser marcado no cartão.

A opção "E" faz alusão a um sistema de plantations modernos “uma variação baseada em latifúndios e mão de obra escrava”. O Enem planeja associar alhos com bugalhos, pois a analogia fala por si: não importa o quanto melhorou a vida das pessoas no campo, com tratores de última geração, com GPS, com energia elétrica, pois, se elas laboram em grandes fazendas, elas, automaticamente, entram na lista de remanescentes de escravos ou de escravocratas.

A letra "D" é irônica. A resposta para a indagação "Qual a característica da estrutura fundiária brasileira?" seria "a primazia da agricultura familiar"? Não, os gráficos desenham uma produção de subsistência, sem efeito para superávit. Como desafio à inteligência dos alunos, a questão é ridícula, mas avaliar o desempenho dos estudantes nem sempre é o principal objetivo. O contraste entre o enunciado e a opção poderia despertar aquela revolta tão cara aos movimentos sociais. Tropeçam, ao intentarem um sentimento de indignação do proletariado, que se identificaria com o minifúndio, do chacareiro, do sitiante, do meeiro, um pessoal que transpira junto com a família e não almeja a dó de ninguém, só precisa de estradas boas e financiamento justo.

Quem escolhesse a alternativa "B" apostaria na "existência de poucas terras agricultáveis", o que é um absurdo, dadas a dimensão continental, a fertilidade do solo e a ainda resistente água doce.Os produtores que transformaram o Brasil no celeiro do mundo são tratados como réus, o que não é novidade no Enem.

A hipótese "A", apontada como correta, é o mantra de tipos como o incendiário João Pedro Stédile e o presidiário José Rainha. A resposta certa para a pergunta "Qual a característica da estrutura fundiária brasileira?" é "A concentração de terra nas mãos de poucos". Não é verdade. As características são o avanço na legislação de propriedade e a terra com função social, não importam os metros quadrados. O Governo se abstém de extensão e de pesquisa, mas as empresas do ramo suprem com laboratórios, com técnicos e com experiências.

De um lado, fazendas gigantescas são entregues com critérios questionáveis a quem sabe o que é roça por ter acampado perto de uma. No outro lado, lavouras e carnes estão preenchendo estômagos nos cinco continentes. Depois de fazer muito mal à democracia, de preparar trambiques de norte a sul, de torrar bilhões de reais arrancados dos cofres públicos, o MST está em declínio. Os pequenos lavradores viram que seus líderes não se contentavam em invadir plantação e em roubar dinheiro de convênios - eles estavam invadindo a boa-fé e roubando-lhes o rico dinheirinho destinado à refeição do dia a dia. Rainha está no trono da cadeia por malfeitorias desse jaez. Faltam os outros.

A Questão nº 10 traz em sua raiz a pretensão de demonstrar o caráter devastador do capitalismo. Depois de um trecho do livro Lideranças do Contestado, filosofa que uma série de empreendimentos chegou à região meio-oeste de Santa Catarina, gerando um impacto social que redundou na Guerra do Contestado. Cabe ao estudante apontar qual mazela do livre mercado desaguou no conflito com armas.

Opção A: afirma que "a absorção dos trabalhadores rurais numa serraria resultou em êxodo rural". O ser humano busca o melhor. Se a vida no campo naquela região estava ruim, natural migrar para horizonte com melhores chances de ser feliz.Opção B: "O desemprego gerado pela introdução das novas máquinas, que diminuíam a necessidade de mão de obra". Fechadas as aspas, é a surrada ideologia que pretende restaurar o linotipo, o tear, o martelo e a foice. A tolice de associar maquinaria a corte de vagas é superada pela propaganda do Governo: a tecnologia está nas indústrias e nos campos, e o índice de desemprego é o menor em anos.

Opção C, que o gabarito aponta como correta: diz que o fato gerador da guerra foi a "desorganização econômica tradicional, que sustentava os posseiros e os trabalhadores rurais da região". Os empresários que ali sentaram praça espalharam ferrovia para o progresso entrar nos trilhos. Provocaram impacto na economia local, como é praxe em quaisquer mudanças de paradigmas, mas, a médio e longo prazos, todos ganham - a região, os investidores e os anfitriões. O propósito do Enem é formar uma geração de conformados, alheios a esforço, descrentes no mérito, à espera do Bolsa Família, sem despertar para a inovação, a criatividade, o empreendedorismo.

Opções D e E: uma equipara os investidores a velhos coronéis engalfinhados em disputa de poder, e a outra sugere uma guerra de classe entre operários e patrões, ligados ao capital internacional, o manjado e retrógrado discurso utilizado tantas vezes por sindicalistas. O examinando conclui que ascensão segura é na militância. Estudar é insuficiente, tem de entrar na ONG, na associação, na Oscip, na organização social, no partido aliado.

A Questão nº 12, Sr. Presidente, abriga a maçaroca que vou reproduzir como está: “A Inglaterra pedia lucros e recebia lucros. Tudo se transformava em lucro. As cidades tinham sua sujeira lucrativa, suas favelas lucrativas, sua fumaça lucrativa, sua desordem lucrativa, sua ignorância lucrativa, seu desespero lucrativo. As novas fábricas e os novos altos-fornos eram como as pirâmides, mostrando mais a escravidão do homem do que seu poder”.

Li o enunciado como o aluno o encontrou no Enem. A pergunta abarca a relação entre os avanços tecnológicos durante a Revolução Industrial Inglesa e as características das cidades fabris do início do século XIX. A hipótese A poderia ser considerada correta, não fosse o Enem tão direcionado. Ela diz que “a facilidade em estabelecer relações lucrativas transformava as cidades em espaços privilegiados para a livre iniciativa, característica da nova sociedade capitalista”. Extrair lucro do lixo, das favelas e da ignorância não torna o trabalho menos digno. Pela tese esposada, o professor se beneficia da ignorância, o médico se beneficia da doença, o policial se beneficia do crime, o gari se beneficia do lixo. Não há alternativa confirmando que assim se consegue erudição, cura, segurança e limpeza. E é o que ocorre.

A opção D levanta a proposta de que a grandiosidade dos prédios das fábricas revelou os avanços da engenharia e arquitetura do período, tornando as cidades locais de experimentação estética. O que deveria merecer elogio, no Enem é digno de reprimenda. A ideia é imprimir no aluno que o capitalismo é incompatível com a sensibilidade artística. A alternativa correta, letra E, é o mote do atraso. Vou ler como está na prova: “O alto nível de exploração dos trabalhadores industriais ocasionava o surgimento de aglomerados urbanos marcados por péssimas condições de moradia, saúde e higiene”. Para acertar e exibir boa nota no Enem é vital ratificar a frase, que despeja no desenvolvimento industrial o dolo pelo caos que convive com a prosperidade. E prosperidade à custa de suor, para esses aí dos palácios, é um pecado mortal.

O Enem pisca os dois olhos para o bolivarianismo de Evo Morales e dos hermanos latinos. A cegueira histórica, nada mais, justifica a Questão nº 13, que trata da anexação do Acre, desmerecendo o Tratado de Petrópolis, mas vamos retornar para o agronegócio, que os redatores do Enem consideram o vilão do desenvolvimento brasileiro.

Na Questão nº 14, a introdução fala sobre uma manifestação indígena na Avenida Paulista, em São Paulo. O avaliador lança a afirmativa para o estudante eleger argumento que a corrobore. Vou ler o enunciado: “A questão indígena contemporânea no Brasil evidencia a relação dos usos socioculturais da terra com os atuais problemas socioambientais, caracterizados pelas tensões entre”... Aí vêm os cinco modelos de abadás, em forma de alternativas, para os alunos saírem apitando e jogando espelhinhos nos exterminadores de caiapós, tupis, carajás e tantas outras tribos.

O ardil do Enem, Sr. Presidente, impele o incauto a armar seu protesto em defesa das reservas indígenas, dentro do coitadismo institucionalizado, como se índio criasse teia de aranha no cérebro. A outra maneira de fugir é equipar a caravela e deixar o País com vergonha dos seus antepassados exploradores. Vamos às alternativas indignas dos “protetores” indígenas:

Opção E: afirma que o conflito no Cerrado se dá entre o campo e a cidade, fazendo com que as reservas sofram com “invasões urbanas”. Pelo jeito que descrevem, dão a entender que está acontecendo uma guerra entre indígenas e não índios, com flecha voando para todo lado. Eu moro em Goiás e trabalho durante a semana em Brasília, duas unidades da Federação que compõem o Cerrado. Conheço bem as centenas de localidades e jamais vi no bioma megalópole plantada sobre aldeia, prédios substituindo as ocas e essas outras culpas jogadas sobre todos os brasileiros.

Opções D e C: o vilão é o capitalismo, como virou tradição no Enem. O conflito se dá entre os povos indígenas e a cruel elite industrial paulista.O Enem volta a bater nos produtores rurais, que seriam privilegiados pelo plantio em larga escala do solo em comparação com a brandura destinada ao uso tradicional. Nas entrelinhas, o jeito é deixar a lavoura sob controle dos índios, que eles dão conta de alimentar o Brasil e o mundo. Nem os indígenas saem em público para proferir bobagens assim, a menos que a diretoria da Funai ensaie com eles os termos. Quem acha isso são os que os supõem inválidos, e eles são brasileiros comuns, que sofrem com a demagogia.

Opção B: aponta uma conspiração entre “os grileiros articuladores do agronegócio” para atacar “os povos indígenas pouco articulados”. Não noticia quando foi a última matança de índios por fazendeiros.

Opção A, considerada correta, deixa assim a frase: “A questão indígena contemporânea no Brasil evidencia a relação dos usos socioculturais da terra com os atuais problemas socioambientais, caracterizados pelas tensões entre [...] a expansão territorial do Centro-Oeste e Norte, e as leis de proteção indígena e ambiental”.Não diz um “a” sobre o comércio de madeira, os garimpos, a falta de comida e de remédio.

Os avaliadores entram na Guerra do Paraguai, citando contradições entre dois pesquisadores. O primeiro é Júlio Chiavenato, em um trecho do livro Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai. O outro é Francisco Doratioto, na obra Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. A ideia do Enem é cristalizar no imaginário do jovem que Solano López foi vítima da Inglaterra. Conforme documenta Doratioto, López era um ditador sanguinário, cujos inimigos não eram a Coroa britânica ou a Tríplice Aliança, mas a própria covardia.

A Questão nº 23 foi baseada no poema “Perguntas de um trabalhador que lê”, do alemão Bertolt Brecht, um bom poeta, cuja exclusividade é reivindicada pela galera de boina. Depois de apresentar versos censurando a memória construída sobre determinados acontecimentos marcantes, o Enem pergunta a que se refere a crítica de Brecht.

Opção A: considera históricos os autores de feitos heróicos ou grandiosos, que, por isso, mereceriam ficar na lembrança. No entanto, a obra de Brecht é uma ode aos trabalhadores, não trata de quem merece ou não entrar para a história. Por analogia, a intenção do examinador é o estudantequestionar: por que celebrar Juscelino Kubitschek se milhares de operários o ajudaram a construir Brasília? Não passou pela cabeça da direção do Enem agradecer a ambos, a JK e a quem pôs a mão na massa.

Opção B: fala que a história deveria se preocupar em memorizar o nome dos reis ou dos governantes das civilizações que se desenvolvem ao longo do tempo. É uma maneira de atirar o jovem contra os administradores, prestem eles ou não. Usando a mesma analogia, companheiros, mandemos ao limbo o Monumento a JK e ergamos no chão desocupado uma estátua aos operários anônimos!

Opção C é a correta no gabarito: afirma que “os grandes monumentos históricos foram construídos por trabalhadores, mas sua memória está vinculada aos governantes das sociedades que os construíram”. A interpretação é repleta de ideologia. A prova do Enem parece gritar: “Companheirada, vamos tirar a sigla JK e os nomes Juscelino e Kubitschek das homenagens e substituí-los pela efígie e o nome do Lula”. Ora, os trabalhadores são, todos, importantes, e eles mesmos se sentem gratificados quando se erige algo em memória de seu líder.

E assim seguem as 180 perguntas e 900 possibilidades de respostas. Tratam de política, de homofobia, de Getúlio Vargas e de uma infinidade de assuntos. Em qualquer tema, em qualquer abordagem, o que interessa é inculcar as diretrizes da permanência no poder. Para isso, o jovem tem de desconsiderar tudo o que houve no Brasil da era pré-cabralina até 1º de janeiro de 2003, marco zero da era glacial tropical, um tempo infindável de otimismo e repartição de riquezas. Até o momento, as riquezas foram repartidas somente entre o Governo e os banqueiros, mas não custa continuar sonhando.

Gostaria de voltar a discutir o Enem antes de sua edição 2011, nos próximos dias 22 e 23 de outubro. As provas, é óbvio, já foram elaboradas e impressas. Mas é preciso rogar ao Ministério da Educação que atente para os testes. O Enem deve avaliar o nível de conhecimento, não o de militância. A iniciativa do exame é louvável e não pode ser atrapalhada pelo recrutamento de cabos eleitorais em que se transformaram as políticas públicas de Educação.
Muito obrigado, Sr. Presidente. Muito obrigado pela tolerância.

[Os itálicos são meus.]

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Mensurar áreas, simples graças a um Eng. Agronômo

Estava eu em minha tarefas de estágio, analisando e georreferenciando áreas rurais, e para mensura-las, não encontrava ferramenta adequada, tendo em vista que para a grande maioria, e para mim, o Google Earth é o software mais utilizado nestes trabalhos para encontrar e marcar áreas, e apenas em sua versão pró (paga) disponibiliza ferramentas de mensura. Foi aí, que por um conselho de meu irmão mais velho, descobri o software GE-Path. Baixei-o, e comecei a utiliza-lo, e fiquei surpreso, pela sua precisão no trabalho de mensura de áreas, utilizando-se de dados do Google Earth. O Ge-Path, é gratuito, e está disponível em língua inglesa para download.

Após utilizar este programa, e garantir-me de sua qualidade, me interessei por saber quem o havia produzido, já imaginando ser uma empresa norte-americana, mas minha surpresa foi grande, ao saber que tal software, e não só este, mas também muitos outros, foram produzidos pelo Engenheiro Agronômo gaúcho Ricardo Bohrer Sgrillo, formado pela UFRGS, com mestrado em Energia Nuclear na Agricultura, e doutorado em Entomologia, ambos pela USP. E PhD também pela USP e pelo United States Department Of Agriculture (EUA).

Seus trabalhos desenvolvendo freewares (programas gratuitos) são de grande valia, para qualquer profissional, não só de Agronomia, mas de outras engenharias, ciências agrárias e geográficas em geral.

Além do GE-Path, outro que programa seu que ajudou-me e ainda ajudará muito, é o GraphData, onde nele, pode-se extrair dados analíticos de gráficos que estão em imagens (jpeg, tiff, etc). Facilitando dessa forma um trabalho que poderia demorar horas, no lápis.

Abaixo disponibilizo alguns links dos programas, e do site do Eng. Agrônomo Ricardo B. Sgrillo.
Espero que estas ferramentas possam facilitar o trabalho dos colegas!

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O dever de ser nacionalista

Por: Fernando Rodrigues Batista

"Haveis de reconquistar o Brasil, não pela força bruta das armas mas pelo poder invencível das almas. Sois os arautos do advento da Idade Nova, que breve será instaurada no Brasil sob signo sagrado do Cristo."
Alcebíades Delamare


Somos católicos e dentro da universalidade dessa filiação divina, somos nacionalistas, nacionalismo temperado pelo catolicismo, tal qual sempre foi o autêntico nacionalismo pátrio.Portugal e Castela realizaram uma obra prodigiosa de expansão imperial e entrelaçamento de povos e raças, como não há exemplo igual na vida dos outros povos.

O verdadeiro nacionalismo brasileiro, portanto, não pode deixar de ter um sentido lusíada e hispânico. Daí a afirmação insuspeita do historiador inglês Toynbee (protestante): "Os espanhóis e portugueses, cristãos e católicos, levaram a cabo um sentido colonizador peculiar; não só comem seu pão com os indígenas que civilizaram, mas ainda se casam com eles. Deus os bendiga. Se o gênero humano chegaram dia a reunir-se numa sí família, será graças a eles e não a nós".

Logo, a ação histórica de Portugal e Castela, uma empresa inédita, marcada com o signo missionário e civilizador, só pode ser equiparada ao colonialismo mercantilista – como fazem os agentes do anti-Brasil - pelo desconhecimento da história ou pela má fé dos sectários de ideologias hostis a essa obra.Bem sabemos, nós, brasileiros, pela experiência de nossos antepassados, o que foi a atuação colonial, no sentido superior desta palavra – de colere, cultivar, donde cultura -, isto é, a ação cultural e civilizadora dos portugueses ao construírem o Brasil. Ação empreendida sob o signo da Cruz, trazida como símbolo nas caravelas e plantada no solo brasileiro ao desembocarem pela primeira vez aqui os súditos de El Rei Dom Manuel, logo genuflexos ante o altar da Missa celebrada por Frei Henrique de Coimbra, ação profundamente civilizadora por eminentemente missionária.Seguindo esta linha de raciocínio, a Pátria é para nós um patrimônio espiritual como a concebeu alhures Ramiro de Maeztu, barbaramente fuzilado pelos marxistas espanhóis em 1936. O que da forma a Pátria única é um nexo, uma comunidade espiritual, que se torna, ao mesmo tempo, um valor da história do Mundo. Só a Pátria assim concebida nos dará a coragem de levar assim ao último extremo a vontade de sacrifício, o esquecimento do bem próprio, a heróica febre de vencer ou cair: os homens prontos a aceitar a morte para que a Pátria viva!.Nacionalismo, aplica-se, com efeito, mais do que à terra dos antepassados, aos próprios antepassados, ao seu sangue e às suas obras; à sua herança moral e espiritual mais do que à sua herança material, como anuiu Maurras.

No entanto, a todo custo, querem os agentes do anti-Brasil nos apresentar uma história falsificada em seus desígnios, feito de per si trágico, cujos protagonistas são homens vulgares, vagabundos de espírito, que proliferam desde os bancos escolares o cumprimento de um novo decálogo, uma religião panfletária com deuses utilitaristas, no intento de fazer encobrir nosso olhar para o alto.

Em política, a história tem dado mostras do poder destruidor da conspiração anti-cristã e maçônica, e de que o método democrático nas mãos da partidocracia e do poder do dinheiro significa a desolação da nação.

E as desordens são de toda sorte; basta ver a educação sem Deus que nossas crianças recebem, a degradação do ensino universitário, leis e mais leis que atentam contra a família natural, a imoralidade que reina nos meios de comunicação, a difusão universal de literaturas perniciosas e de um cinema corruptor que desmoralizam gerações de jovens, sem atinar para criminalidade sem precedentes vinculadas geralmente ao tráfico de drogas e ao uso de tais substâncias.

Pondera Charles Beudant que uma sociedade pode ser grande e próspera apesar dos erros, mesmo graves, na ordem das ciências físicas, ao contrário, se um erro desviar um país da ordem moral e política, será um desastre total: os povos que não aceitam a disciplina dos princípios acabam por sofrer cedo ou tarde a disciplina da força.

E assim nós, católicos, nacionalistas, encontramo-nos amordaçados, exilados, confinados em nossa própria terra, em um Brasil que não mais é Brasil, esvaziado que foi de toda sua tradição histórica, de todo seu arcabouço moral e metafísico; vivemos covardemente, sem sinais de qualquer reação sob o império da demagogia democratica de que com tanta desenvoltura falam nossos homens públicos.

Uma nação cuja seiva espiritual fora relegada ao ostracismo não passa de terra árida que esteriliza a semente, é a massa que abafa o fermento. Poderão desaparecer as tensões, mas será a calmaria do deserto. As aparências poderão ser de paz, mas será um simulacro de paz, semelhante ao pesado silêncio da morte.

Em face de tais circunstâncias, que esperar de uma geração educada por mestres cuja maior preocupação é torna-la ímpia? Pio XII nos dá um direcionamento seguro: "Não os acovardem amados filhos, as dificuldades externas, nem os desanime o obstáculo do crescente paganismo da vida pública. Não os conduzam ao engano os suscitadores de erros e de teorias degradantes, perversas correntes, não de crescimento, senão de destruição e de corrupção da vida religiosa".

Ser nacionalista na hora presente é um dever inelutável, uma exigência peremptória e a única política prudente face as atuais circunstâncias da Pátria. A nação encontra-se pavorosamente diminuída moral e materialmente; somente uma política de sacrifícios extremos, de afirmações substanciais, nos permitirá resistir a pressão dos poderosos da terra e salvar, ao menos, a identidade de nosso ser nacional, de nossa individualidade histórica.

Nosso nacionalismo, porém, não se circunscreve a hostilidade ao indecoroso comunismo como o faz certa classe de nossa elite; nosso nacionalismo só tem sentido se revestido do catolicismo, pois que seu fundamento essencial, sem o qual não passaria de um nacionalismo aos moldes jacobinos, sem qualquer sentido para nós.

Sim, ser nacionalista para nós significa um sagrado compromisso para com a pátria, para com nossa história e nossa estirpe; que os tíbios e os medíocres nos alcunhem do que bem lhe aprouverem, pois enquanto vociferam seus ressentimentos, nós estaremos combatendo por Cristo e pela Pátria.

Há que restaurar tudo em Cristo seguindo o lema de São Pio X, incluindo naturalmente a Pátria.

Se queremos libertar a Pátria em Cristo e nossa opção é o Nacionalismo cristão, devemos começar por nossa liberdade interior, renovando os afetos, bens e poderes em Cristo Crucificado.Desprendidos do amor próprio e de tudo o que possuímos, amaremos a Pátria e ao próximo com um amor transcendente, despojado de todo caráter possessivo e que não busca nada para si. Amaremos como Cristo nos amou, com uma disponibilidade sem reservas para o serviço e com um espírito de sacrifício que tudo da sem nada receber nem esperar.

Tão somente assim venceremos ao mundo como o venceu Cristo. Não teremos em conta o êxito, senão o testemunho da Verdade e o exemplo dos fazedores da Verdade.

O Nacionalismo que não se propõe reconstruir a Pátria em Cristo, não é conforme com a realidade nem com a verdade do homem; não é tampouco conforme com a origem, a raiz e a essência do povo brasileiro.

Perder nesta Cruzada é ganhar, porque do fracasso e da derrota se irradiará o exemplo triunfal e arrebatador sobre as gerações futuras.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

A imaginação católica de Tolkien

Por: Jason Boffetti
Tradução: Maria Alice Soares de Castro
Fonte: ACI

Os grandes livros têm muito que temer os filmes de grande bilheteria. E a adaptação cinematográfica de Peter Jackson de O Senhor dos Anéis, poderia não ser a exceção. Os novos fanáticos de Tolkien que ingressam no mundo da Terra Média de Tolkien poderiam não se preocupar em ler sua obra, e o mais triste é que poderiam deixar de conhecer a imaginação católica que a inspirou.

Inclusive entre os fantasiosos devotos que reconhecem Tolkien como o pai do gênero moderno, poucos sabem que Tolkien insistia que O Senhor dos Anéis é “fundamentalmente um trabalho religioso e católico”. Provavelmente, isto seja também uma surpresa para muitos católicos.

Leitores de O Senhor dos Anéis provavelmente não encontrem una “Terra Média Católica” buscando as sutis referências ao Evangelho Cristão símbolos católicos ocultos –Tolkien repudiava este tipo de análise–, mas poderiam encontrar isto ao contemplar as motivações de Tolkien como escritor.

Hobbies de um cavaleiro de Oxford

Para o mundo exterior, Tolkien foi a figura de um obscuro cavaleiro de Oxford: brilhante, jovial, um pouco atarracado, detalhista ao escolher seu vestuário, alternando-o entre camisas e coletes debaixo de seu paletó de lã de Oxford.

Embora não fosse suficientemente bem parecido, os estudantes diziam que mal podiam entender uma palavra dele porque murmurava tudo com seu onipresente cachimbo. De muitos modos, ele representa a figura dos hobbits sobre os quais escreveu, que preferiam a comodidade do lar às grandes aventuras.

Como muitos cavaleiros de Oxford, Tolkien preferia ter uma vida acadêmica tranqüila e um hobby peculiar. Desde sua infância amava inventar línguas e histórias imaginárias para continuá-las. Sua inclinação pela linguagem e o mito atraiu Tolkien a uma carreira acadêmica. Tornou-se professor de literatura inglesa da Universidade de Leeds e posteriormente de Oxford. Ainda como professor em tempo integral, sempre encontrava tempo para trabalhar em suas “línguas de duendes”.

A história da Terra Média surgiu de sua fértil imaginação à medida que ia criando essas línguas fictícias. Ao longo de sua vida, Tolkien escreveu, reescreveu, e aperfeiçoou episódios principais dessa história mas nunca estava completamente satisfeito com eles. As distrações da vida e a magnitude do trabalho o impediam de completar sua visão. Estes escritos dispersos – postumamente publicados por seu filho, Christopher, como “O Silmarillion” – formam a experiência narrativa da Terra Média. Entre os sub-argumentos está a saga do Anel – um anel que outorga a quem o possua o poder de dominar os mais obscuros seres da Terra Média. A história de sua criação e eventual destruição, assenta as bases do que agora são considerados como suas mais grandes obras: O Hobbit e O Senhor dos Anéis.

Quando os dois primeiros volumes de O Senhor dos Anéis foram publicados em 1954, 17 anos depois de O Hobbit, Tolkien tinha sido professor de Oxford durante 30 anos e estava a apenas quatro anos de se aposentar. O renome que havia evitado previamente, atingiu-o como uma tempestade de fogo nos anos 60 quando seus livros foram reconhecidos como obras primas, inspirando um novo gênero literário: ficção fantasiosa. Mas o sucesso e o reconhecimento de seus colegas não foram o estímulo de seu trabalho. O estímulo de seu trabalho foi sempre sua fé católica.

A fé de uma mãe

Humphrey Carpenter, biógrafa autorizada de Tolkien, caracteriza a fé católica de Tolkien como “total”. Seus amigos o conheciam como um católico manifesto que foi tanto apostólico (foi instrumento na conversão de C.S. Lewis ao cristianismo) como piedoso.

Ao longo de sua vida, Tolkien encontrou a Eucaristia como um incomparável consolador durante os assaltos de melancolia e desesperança que de vez em quando sofria. O especial consolo que recebia durante a comunhão foi especialmente importante durante o desorientado período em que o Vaticano II foi implantado pela primeira vez. Freqüentemente acudia à confissão, embora à vezes uma perturbadora auto-reflexão parecesse aproximar-se ao escrúpulo. Quando não conseguia confessar seus pecados se atormentava com uma ansiedade espiritual porque não podia receber a Eucaristia.

Ninguém teve maior influência no desenvolvimento de sua fé e intelecto que sua madre, Mabel. Tolkien afirmou que tudo o que sabia, aprendeu de sua fé católica, e que tudo devia a sua mãe que, segundo Tolkien, “aderiu à sua conversão até sua morte prematura, apesar da dureza da pobreza que dela resultou”.

Mabel literalmente trabalhou até morrer, mantendo sua família, depois que seu esposo morreu na África do Sul, de uma febre reumática, quando Tolkien tinha apenas quatro anos. Educou seus dois filhos sozinha em um subúrbio de Birmingham, Inglaterra. Durante esses difíceis anos, Mabel tomou duas decisões importantes: educar seus filhos na fé católica, e assegurar-se de que tivessem educação suficiente para continuar carreiras universitárias.
O primeiro ponto foi conseguido com a ajuda dos sacerdotes do Oratório de Birmingham. Fundado por John Henry Newman em 1859, o oratório converteu a tradicional cidade presbiteriana de Birmingham em um centro de ressurgimento católico ao final do século XIX na Inglaterra. Mabel havia crescido como unitária e passou vários anos na Igreja Anglicana. Depois de anos buscando a verdade, foi recebida na Igreja Católica junto com seus filhos na Igreja Anne em 1900.

Sem os rendimentos de um pai, o tema da educação de seus filhos era una grande preocupação porque as melhores escolas cobravam uma taxa de matrícula. Além disso, sua decisão de se converter ao catolicismo a afastou da maioria de seus familiares, que lhe retiraram seu apoio financeiro. Por isso, Mabel fez o que qualquer mulher com recursos de uma boa educação de classe média faria: educou seus filhos em casa até que pudessem ser aprovados nos exames de admissão e obter bolsas em um bom colégio privado.

Sob a instrução de Mabel, Tolkien leu quando tinha quatro anos, e aprendia latim, francês e alemão com a idade de sete anos. Entusiasmou-se tanto com os idiomas que por fim foi aceito em uma das melhores escolas particulares de Londres, obtendo uma bolsa. Em 1909 a carreira acadêmica de Tolkien foi assegurada quando ingressou no Colégio Exeter de Oxford.

Infelizmente, Mabel não viveu para ver os frutos de seu trabalho. Em 1904, quando Tolkien tinha apenas doze anos, morreu de diabetes, uma doença que então não tinha tratamento. Antes de sua morte, ela se assegurou de que seus filhos continuaram se educando na fé católica recorrendo a um amigo do oratório, o Padre Francis Morgan, a quem nomeou protetor legal de seus filhos e conseguiu com que seus parentes protestantes se comprometessem a não tentar converter seus filhos.

Somente a fé susteve Tolkien durante a ausência de sua mãe. Até que os dois filhos atingissem a maioridade, o Padre Morgan os proveu economicamente com seus próprios recursos. Esses foram anos de austeridade e fome para os dois irmãos, mas sempre mantiveram um profundo afeto pelo severo mas sensível Padre Morgan. Enquanto estiveram sob seus cuidados, nunca lhes faltou apoio espiritual ou intelectual. Toda manhã os meninos o ajudavam durante a Missa e tomavam o café da manhã com ele no refeitório.

Casado com graça

Tolkien se apaixonou por uma amiga sua, Edith Bratt, quando tinha somente dezesseis anos. O Padre Morgan descobriu seu romance clandestino quando notou que as notas de Tolkien caíram. Edith era três anos mais velha que Tolkien e era protestante, pelo que o Padre Morgan desaprovava o relacionamento; no entanto, oito anos depois presidiria seu casamento.

Devido a suas diferentes educações religiosas, o casamento poderia ter sido uma trágica decepção, mas os Tolkien o converteram em uma ocasião de graça.

Embora Edith tenha aceitado converter-se ao catolicismo como condição para efetuar seu casamento, fê-lo de má vontade. Com o pasar dos anos, seu ressentimento por ter que se confessar cresceu com força, até que finalmente deixou de assistir à Missa e manifestou seu desacordo quando Tolkien levou seus filhos à igreja.

Como suas diferenças religiosas se tornaram irreconciliáveis, os Tolkien aceitaram que Edith voltasse a assistir aos serviços anglicanos. Como resultado, sua hostilidade contra a fé de seus filhos e seu esposo desapareceu. Apesar de suas dificuldades, sua mutua devoção à família manteve seu casamento por 55 anos, e ambos ficaram encantados quando sue primeiro filho, John, tornou-se sacerdote católico.

Eucacatástrofe e mito-poética

De todas os seus relacionamentos, sua amizade com C.S.Lewis foi a mais significativa para seu crescimento intelectual. Estes dois homens poliram seus agudos intelectos durante longas caminhadas no campo inglês. Os frutos de sua longa amizade são impossíveis de medir. Através de uma amistosa conversação, Tolkien descobriu como poderia integrar sua fé católica com sua vocação literária.

Quando Tolkien e Lewis se encontraram pela primeira vez como jovens cavalheiros em Oxford, em 1926, ambos foram atraídos por um amor compartilhado pela mitologia nórdica. Sua amizade foi crescendo e se fortalecendo enquanto liam poesia épica nórdica em um clube chamado “Coalbiter”. Posteriormente, fundaram uma sociedade literária “ad hoc” chamada “Inklings”. Os encontros deste pequeno grupo de amigos inspirariam a ambos: a Lewis para escrever suas “Crônicas de Nárnia”; e a Tolkien para criar o “Hobbit” e “O Senhor dos Anéis”.

No entanto, foram suas longas discussões sobre a relação entre a literatura e a religião que cimentaram a amizade entre Tolkien e Lewis, uma amizade que foi o centro da conversão de Lewis do agnosticismo. Através de uma persistente paciência, Tolkien introduziu Lewis no teísmo filosófico. Sua subseqüente conversão ao cristianismo dependia de um argumento que interpelava de maneira especial a ficcionária mente de Lewis. Este argumento também revela algo muito importante acerca do entendimento de Tolkien sobre sua vocação como artista.

Tolkien observou que era comum, através da história da humanidade, criar mitologias de maneira que transmitam as crenças mais elementares. É razoável assumir – argumentava o escritor – que, se existe um Deus, Ele transmitiria sua revelação em forma de mito, ainda que este mito fosse verdade.

O cristianismo foi o candidato mais possível para encarnar o “mito perfeito”, já que compartilhava todos os elementos comuns das melhores mitologias.

O relato evangélico foi considerado por Tolkien e Lewis como uma “eucacatástrofe”, a mais alegre de todas as tragédias, já que satisfazia os anelos mais profundos do coração humano, incluindo o desejo de uma mitologia épica. Mas este mito tinha a vantagem de ser um fato histórico interpretado através do texto literário e a tradição poética.

Este discernimento desenvolvido por Tolkien e Lewis em toda sua literatura filosófica e mitológica os inspirou a criar novas mitologias para nosso tempo. Eles passariam o resto de suas vidas argüindo separadamente sobre como o entendimento de um mito, uma religião e literatura poderia ser aplicada à arte de escrever.

Para estes dois frustrados poetas, que ganhavam a vida como cavalheiros de Oxford, existia uma óbvia conseqüência de sua teoria sobre a mito-poética: eles tinham que começar a escrever ficção popular. Se Deus usava narrativa para comunicar sua revelação ao homem, e o homem é chamado a ser imagem de Deus na terra, então a mais nobre vocação do homem é criar novos “mundos secundários” na narrativa.

A mitologia para a Inglaterra

Embora “O Senhor dos Anéis” e as “Crônicas de Nárnia” representem o florescimento de um acordo sobre a mito-poética, Tolkien e Lewis discordavam nos propósitos religiosos que utilizaram para criar Nárnia e a Terra Média.

Lewis, o anglicano evangélico, esperava que suas histórias atraíssem seus leitores à verdade do Evangelho. Como resultado, “As Crônicas de Nárnia”, foram erguidas com um óbvio simbolismo cristão, alegorias e evidentes instruções sobre a moral e a religião. Em suma, Lewis quis que seus escritos fossem evangelizadores.

Para o católico Tolkien, no entanto, era mais importante que a Terra Média fosse uma “sub-criação” de sucesso. Utilizando sua vasta literatura, lingüística e talentos históricos, Tolkien concebeu e criou a Terra Média como um ato de divina glorificação.

Quanto mais convincente e real resultava a Terra Média, mais pura era sua aproximação ao próprio ato da criação de Deus.

Diferentemente de Lewis, Tolkien foi muito mais resistente para criar seu mundo ficctício sob qualquer tipo de desígnio pedagógico. Ele acreditava que no momento em que seus leitores fossem conscientes das muitas conexões entre nosso mundo e “os mundos secundários” da ficção, o feitiço literário se romperia. Tolkien quis que seus leitores cressem de verdade na Terra Média e não a concebessem como um mero instrumento de evangelização.

Poucos leitores de “O Senhor dos Anéis” sabem que Tolkien esperava que a Terra Média se convertesse na mitologia nativa da Inglaterra. Pensava que a lenda do Rei Artur era muito fraca comparada com a épica de Homero e a lenda de Norse. A Terra Média, com sua inspiração heróica e advertências sobre o perigo de ter o poder, foi criada para preservar um legado único cultural inglês dos terríveis e contagiosos erros da modernidade.

Com isto em mente, podemos entender por que a Terra Média parece abraçar a magia e um suave paganismo. O marco histórico da imaginação de Tolkien foi a antiga Inglaterra pré-cristã – as lendas anglo-saxônicas e nórdicas com suas histórias de coragem heróica e misticismo pagão. Tolkien se propôs a estabelecer a Terra Média antes da vinda do cristianismo, já que temia que caísse em una espécie de alegoria enervada.

Forjando a geologia moral

Em que pese sua aversão em mostrar publicamente a religiosidade em suas histórias, Tolkien sempre afirmou que seu trabalho ensina a boa moral e anima seus leitores a voltar à fé católica. O autor simplesmente resistiu a admitir que este deveria ser o propósito principal de um fazedor de mitos; pelo contrário, Tolkien insistiu que todo o sucesso da “sub-criação” necessariamente conduz à verdade moral, porque as únicas boas histórias são aquelas que refletem exatamente o mundo metafísico em que vivemos e as opções morais que enfrentamos.

Então, embora Tolkien não tenha tentado pregar a teologia moral católica, a arquitetura moral da Terra Média é explicitamente católica. A assombrosa consistência teológica de seu pensamento se evidencia lendo-se aleatoriamente qualquer uma de suas cartas publicadas. Ali, Tolkien admite que criando a Terra Média cuidadosamente construiu um mundo com o mesmo perfil moral de nosso mundo, um mundo criado por Deus com a mesma natureza de nosso Criador.

Por exemplo, Tolkien evitou ilustrar a luta entre os habitantes livres da Terra Média e as criaturas do vilão Sauron como uma estrita batalha entre “o bem e o mal”. A aproximação de Tolkien é sobretudo agostiniana: os personagens da Terra Média se distinguem, antes de tudo, pelo que amam, não por onde vivem. Nas cidades-fortalezas dos habitantes livres, Minas Tirith e Edoras, encontra-se tanto o homem como o corrupto. Cada um dos personagens pode ser arruinado pela vaidade; mas até o mais débil tem a capacidade de redenção.

Tolkien descreve esta tensão mais explicitamente no personagem de Gollum, um obsequioso e malévolo buscador do Um Anel, que vacila constantemente entre possuir o anel e sua lealdade aos hobbits. Tolkien cuidadosamente retrata Gollum como um traidor assassino e como uma vítima de sua própria vontade selvagem. Inclusive Sauron, o Satanás da Terra Média, foi certo tempo um poderoso anjo guardião antes de ser corrompido por seus desejos de maldade.

Os heróis de Tolkien tiveram suas falhas também, e somos testemunha de seus desafios morais. O mago Gandalf e Boromir, o filho mais velho de de Denethor de Gondor, são tentados pela promessa de glória através do poder do Anel. E os hobbits devem lutar contra seu próprio desejo de abandonar o sofrimento e retornar à comodidade de seu lar, o Condado, em lugar de continuar com sua missão de levar o anel para sua destruição à Montanha da Perdição.

Seguindo os ensinamentos da Summa Contra Gentiles, de São Tomás de Aquino, Tolkien nunca caiu na armadilha de descrever um personagem ou objeto como algo inerentemente bom ou mau. O mal, além de tudo, é a ausência do bem, pelo que não pode ser atribuído a uma pessoa ou coisa.

Até o Um Anel, forjado pelo poder mágico de Sauron, nunca é caracterizado como o mal em si mesmo. Pelo contrário, o poder de liderar aos fantasmas do anel e a invisibilidade que confere são considerados como tentações que fazem do anel algo muito perigoso para quem o use. Os hobbits resistem a esta forte tentação de pecado mortal que representa, somente porque parecem carecer da capacidade para a vanglória, mas por fim são afetados, física e espiritualmente, pelos pecados veniais que este inspira.

Ao longo das novelas, a ética e metafísica da Terra Média são consistentes com o mundo moral que se conhece: corrupção da vontade, no poder mágico ou destino, enquanto no coração se subjugam os maus atos. Objetos mágicos, como a tecnologia em nossos tempos, são bons se usados para bons propósitos.

Mas a aparência da moralidade católica faz com que a Terra Média seja católica ou moralista? Para a distinção dos componentes católicos, devemos nos aprofundar ainda mais nos mundos criados por Tolkien.

“Acidentes” católicos

Tolkien recusou as tentativas de se encontrar um simbolismo católico em seu trabalho, já que detestava as “alegorias em todas as manifestações”. Na verdade, Tolkien freqüentemente repreendia Lewis por tentar disfarçar Cristo com o traje de Leão de Aslan em “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa”. Para Tolkien, se o leitor observasse tal correspondência, perderia o foco na Terra Média, que devia ser vista como um lugar real e não como alguma massa de escombros históricos e religiosos.


Tolkien ainda reconhecia que sua inconsciente sensibilidade católica inspirava os personagens e objetos em seu mundo imaginário. Em uma carta fechada, em 1952, ao Padre Robert Murray (neto do fundador do Dicionário Inglês de Oxford e amigo da família) admitiu de boa vontade que a Virgem Maria forja as bases para todas as suas “pequenas percepções de beleza tanto em majestade e simplicidade”. Não é surpreendente, admite o autor, que o personagem de Galadriel –dotada com radiante beleza, impecável virtude e poderes curativos- ressoa como personagem da Virgem Maria.

No entanto, Tolkien não pode negar que a Eucaristia aparece em “O Senhor dos Anéis” como o “pão de viagem” (lembas), dado pelos elfos aos hobbits para comer durante sua viagem. Os “lembas” reforaçam a vontade dos hobbits e lhes provê o sustento físico necessário para atravessar as terras escuras em sua viagem à Montanha da Perdição. Como ensina a Igreja, enquanto a Eucaristia parece e tem sabor de pão e vinho, nossas sensações abrigam um profundo mistério: a Eucaristia é verdadeiramente o corpo e o sangue de Cristo. Então, em “O Senhor dos Anéis”, a Virgem Maria e a Eucaristia aparecem ocultas nos misteriosos elementos da Terra Média. A melhor maneira de entender isto é ver estes exemplos do simbolismo católico como “acidentes literários”. Deixá-los de lado poderia diminuir a validade da história, já que eles são parte do esforço de Tolkien para fazer com que seu mundo seja completo, verdadeiro para todos os tempos e lugares.

Como autor, Tolkien acreditava que suas histórias fazem, de uma forma limitada e literária, o que o sacerdote realiza no momento da consagração: apresentam-nos Cristo e a história da criação e redenção através de elementos comuns do mundo –neste caso a Terra Média, que se enfrenta com a Verdade de todas as Verdades.

Árvore celestial

Talvez nenhum trabalho individual destaca com tanta luz as intenções artísticas de Tolkien como sua curta história “Folha de Niggle”, considerada como a mais completa autobiografia de Tolkien, e ainda nos oferece uma janela para sua própria alma. Niggle é um homem de cinqüenta anos que, em seu tempo livre, pintava o quadro de uma árvore. O que começou como una insignificante pintura de uma folha, converteu-se depois na pintura de uma árvore, e depois em um belo campo, ocupando um enorme lenço. O temor de Niggle era não concluir seu quadro antes de empreender uma longa viagem da qual não regressaria. No entanto, distrações diversas e obrigações com a família, amigos e vizinhos deixaram-lhe pouco tempo para pintar. Niggle começa a viagem com seu quadro não terminado. Antes que o trem o levasse a seu destino final, ele se deteve em um tipo de estação purgativa e não pode continuar com sua viagem até que “duas vozes” fizeram um juízo sobre sua vida. Ao final, eles permitem que Niggle continue –não porque pintou uma bela árvore (como Niggle esperava) mas porque se entregou ao máximo para atender ao vizinho que mais o distraía: Parish (em quem se vê C.S. Lewis).

O trem de Niggle finalmente o leva até uma terra encantada. No centro encontra uma árvore, a mesma árvore que ele estava pintando em seu estúdio. Mas a árvore e o cenário ao redor estavam incompletos, e Niggle se permite estar aí até terminar de pinta-lo. Uma vez concluído, Niggle se prepara para explorar a terra que havia criado.

A história nos oferece o essencial do catolicismo: os atos corporais de misericórdia, por menores que sejam, refletem nossa vocação tanto como nossas vidas profissionais quando colocadas ao serviço de Deus. Mas Tolkien nos diz algo mais importante acerca de nossas aspirações celestiais: nossas vocações são parte essencial de nossa identidade. Através delas, continuamos servindo e glorificando a Deus por toda a eternidade.

Todos os leitores católicos de O Senhor dos Anéis compartilham una aspiração celestial: algum dia esperam viajar, como Tolkien fez, através dos reinos da Terra Média. Encontraremos, então, Tolkien em seu buraco de hobbit; ele, provavelmente, deveria ter estado ocupado em nossa ausência. Nós nos sentaremos junto dele, bebendo um chá ou fumando um excelente tabaco, enquanto o escutamos contar as histórias da Terra Média que nunca teve tempo de terminar.